Friday, October 22, 2004

Chamam-lhe “o espreita”

Sempre de parka verde sobre o corpo. As calças, de fazenda. Todas elas com todas as modas dos últimos 15 anos. Há quem aprenda história. Uma rapariga ‘freak’ de carne cheia inveja o modelo cinza prata. As mais gastas as púrpura, em reflexos a cinza e branco nas coxas. Não é estilo, mas a cor tingida aí desaparecida pela lima das mãos. A mão esquerda deixa-a quase sempre pendurada por preguiça; só a levanta quando é preciso coçar a testa, local normalmente visitado em insistente frequência pela mão direita. Dois ou três dedos bastam para afagar a pele e as raízes de uns quantos cabelos desgrenhados e grisalhos, secos e ralos, de onde caem ocasionais flocos de caspa. A boca deixa-se estar semi-aberta; fecha-a e abre-a com alguma regularidade (não tanta quanto a assídua massagem na testa e o meticuloso investigar das raízes capilares frontais) mas raramente para bocejar alguma palavra. É apenas ar que por ali entra e sai, vagarosamente, sem deslocar uma chama, melhor que um cantor de ópera. Os olhos, desengraçados e com as pálpebras assimetricamente dispostas, dão um ar tosco e esgrouviado sob as lentes amplas dos óculos do mesmo período perdido no passado que as calças.

Contudo, isso parecem ser pormenores ou meros decoros a polir a personagem, para quem as pessoas olham com algum desdém (mais elas) e distância medida com segurança de sobra e receio de contágio de alguma coisa (mais eles).

Todos os que o comentaram a duas ou mais vozes lhe chamam já “o espreita”, porque normalmente é isso que faz a toda a hora e em toda a vida que se lhe conhece, por onde quer que ande ou esteja parado.

No autocarro inclina-se e vê os artigos do jornal aberto no banco da frente. Raramente esboça um sentimento que nos mostre ironia, humor, preocupação ou mesmo compreensão pelas gordas dos títulos que se crê chega a ler. Olha também frequentemente os ponteiros do seu relógio e os das outras pessoas, descaradamente, insinuadoramente, despreocupadamente. Na Primavera e no Verão o interesse (ou simples entretenimento) estende-se aos decotes das raparigas e às coxas semi-nuas das que se sentam e trazem saias curtas que mais sobem com os bancos. Mas depois lá volta a coçar a testa com dois ou três dedos, quase sempre da mão direita, já se disse.

Os pés deixa-os soltos, a pousar no chão apenas pelos calcanhares, mas com mais incidência num deles, por causa das pernas cruzadas.

Quando o veículo onde segue balança, confia mais na mão direita para se segurar e aguentar na posição que leva desde a partida. Contudo, não aguenta por muito tempo a espera, e mesmo no meio da turbulência acaba por erguer a esquerda para renovar o labor de cuidar da testa e seus nós de fios de cabelo já entrelaçados uns nos outros.

Se o sinónimo do tique ou peculiaridade fossem correntes de pensamento, dir-se-ia estarmos na presença de uma central eléctrica. Mas a sua luz é fraca e pouca. Ninguém se aproxima. Menos ainda os que ficam de volta.

A barba de dois dias, os óculos de aro metálico dourado gasto e pálido, as lentes de tamanho exagerado... O relógio digital com bracelete de pano castanho... O lábio inferior pendente... As maçãs do rosto avermelhadas... O passo lento e torto... E de novo os olhos, por trás dos óculos tortos com as lentes muito amarelecidas pelo sol e por produtos impróprios. É impossível qualquer luz passar por eles sem perder pureza ou força; As rugas nos cantos dos olhos estendem-se e afundam-se mais por isso, e diria eu que não terá mais de 40 anos.

Já o viram parar nas montras, como qualquer pessoa, mas em vez de varrer as prateleiras decoradas de acordo com a estação anual ou promoção ocasional, pousa a mão estendida entre a testa e o vidro para quebrar o reflexo da luz do dia, e ver mais fundo. Vê o que lhe interessa. Espreita quem lá está e o que faz. Olha lá ao fundo a empregada com alguma cliente ou uma criança que se afasta da avó e se põe a mexer numa fita sem ninguém mais ver que ele. Também não é raro vê-lo parado a olhar indiscretamente para duas mulheres à conversa no meio do passeio. Não dura muito. Só o tempo para elas perceberem “o espreita” e se porem logo em marcha. Eu, por mim, gosto de imaginar que ali está apenas um homem estranho, ou um ser humano de comportamentos estranhos, ou simplesmente sem jeito para disfarces para cobrir o seu interesse nas coisas simples e comuns dos homens no seu quotidiano. Mas não sei se conseguiria alguma vez defendê-lo, a ele e à teoria...

Chamam-lhe “o espreita” como podiam chamar-lhe “voyeur”, “curioso”, “cusco”, “chato” ou até mesmo “deficiente”, “retardado” e daí vir a entrar em campos mais injuriosos e flamejantes de irracionais e irreflectidas nomenclaturas caluniosas, animais, baixas e pouco dignas de chamar a qualquer ser humano. Podiam fazê-lo. E já o fizeram. Mas pouco me preocupa. Não sei se ele alguma vez as escuta. Talvez seja porque já terá percebido que a crueldade das legendas e títulos é essa mesma, a de reduzir qualquer coisa ou qualquer um a uma só característica, como se uma folha fosse demais para descrever ou a tinta estivesse racionalizada no uso. Ou talvez a razão maior seja o comodismo ou pura preguiça de ficar satisfeito pela metade.

Pouco importa.
A moral e a ética são palavras como as outras e erros de ortografia toda a gente os dá, e ninguém, aliás, nasce a saber escrever o que quer que seja.

“O espreita”, esse, lá continua, como sempre, a deitar os olhos a tudo, a alguém em particular, a alguma coisa específica, a vaguear, quem sabe, sem ter consciência.

Eu espreito-o a ele, aqui mesmo, hoje a viajar ao lado:
-Que vamos espreitar agora, amigo?

(escrito em 2002.04.28)

Monday, October 18, 2004

Chamam-lhe “o canário”

Chamam-lhe “o canário”. Mas também já ouvi chamarem-lhe “avezinha” ou “coisa fofa”. Os brincalhões conhecidos, os amigos à distância e um ou outro familiar que ainda lhe fala chamam-no Sandro. Os que passam pelos locais habituais por onde ele pára e levam já um copo a mais em cima chamam-lhe “fufa”, “querida”, “maricas”, “mariconço”. Mas de entre todos estes alguns há, e outros de outras categorias, que lhe chamam nomes de todo o tipo e calão baixo. “Prostituta de pilas” foi a última dessas, ainda ontem à noite.

A roupa, essa, terá sido a desculpa para o baptizado. Porque se chamam as coisas pelo que os olhos vêem. Talvez por isso tanta gente diga tantas coisas, porque vê mais do que pensa. Ou porque os olhos são dois e a língua é uma, e nunca fomos bons a resolver dialécticas e dilemas.

Camisas de manchas de cores garridas. Camisas de riscas finas mas vivas. Camisas de seda com padrões de selva e ilhas tropicais estampadas. Azul céu com laranja vivo. Vermelho com verde. Calças de pinças e perna curta, a mostrar o tornozelo nu e os pés sem meias calçados por sapatos pretos, de pala. Às vezes traz sapatilhas, brancas, todas brancas, a condizer com a camisa interior de alças a servir por fora como qualquer outra. Decoros são um ou outro anel, por vezes um fio fino de ouro ao pescoço, no Verão um fio com missangas coloridas no tornozelo direito. Aparência descrita garrida, mas na realidade até algo discreta e, diga-se em abono da verdade, segundo os padrões da moda, muitas vezes mesmo elegante, na sua originalidade distinta.

Mas quem sabe, talvez seja mesmo por isto que lhe chamam canário.
-Canário!
-Olhó canááááário!
-Ó canário queres o meu caralho?
-Ó canário queres o meu bico?
-Canááário! Ó canário! Queres um bico, canário?
-Queres-me um bico, canário?
...
Talvez possa ser pela roupa. Eu não creio.

Se o Sandro cantasse, podia ser por isso. Podia ser pelo dicionário, pelo canto delicado que se diz ter o canário. Mas delicado mesmo, só o seu vulto, parado e sereno pelos poisos do costume, onde sente que está mais protegido. Nunca se viu a erguer-se no espaço, mas antes se abstém de subir ao poleiro e fazer como outros, a proclamar de galo o que são como se do zero passassem a mais que infinito.

O Sandro é diferente.
Só isso.

Deixa-se estar a ler uma ou outra revista na borda da mesa. Apoia os braços no corpo, apertados, aparência esguia e franzina, frágil, quebradiça. Corpo magro, braços finos e pernas de palito. Qualquer um lhe podia partir um membro. A maioria já lhe quebrou mais do que isso. Retirou-se o respeito, esfumou-se o amor-próprio. Há quem diga que é por isso que não canta “o canário”.
-Foi por outro.
É a nova justificação apresentada por quem o vê ali parado na mesa do canto, sempre que está vazia.
-Diz-se que foi o seu único namorado, ao contrário dos outros.
-Pouco pássaro é o que tem só um ninho...
Mas este tinha.

Só por um tinha pousado, só por um ousara usar o mais proibido: a diferença. E daí ficara conhecido, daí passara a posar na rua, os gestos em candelabros com ondulados rebuscados, delicados passos, a voz meiga, os olhos doces, o par ao lado.
Por um tinha vivido igual ao que sentia. Menos igual em volta. Igual a si mesmo. Confuso para quem olha. E no entanto a rua é a mesma, o café o mesmo, a cadeira a mesma, o dia o mesmo, o tempo o mesmo, e todos juntos na mesma gaiola. Menos agora.

Lá fora é a sua prisão. Lá fora quando todos vivem lá dentro. A vastidão da solidão, a amplitude do silêncio, a infindável linha do horizonte despida, e no entanto, apertados, todos num cubículo, mas todos juntos. Menos ele, lá fora, à porta, mas sem estar à espera, apenas sentado na soleira e encostado à parede, a ver as sombras mudarem pela viagem da estrela.

Por vezes vê-se que escreve qualquer coisa. Mas é pouco o que escreve. Diz-se que escreve memórias. As empregadas de balcão que só o vêem de longe dizem que são saudades. Os mais cépticos dizem que são notas de trabalho, afazeres e deveres. Os mais taciturnos cartas de despedida. Os deprimidos a mensagem de partida. Há quem diga que é poesia.

O Sandro, esse, por ali fica, raras vezes deixando as folhas -as suas ou de uma revista- para olhar o mundo lá fora presente nas suas pessoas, nas suas casas, nas suas máquinas, nas suas perigosas e fantásticas descobertas, na sua ciência como na sua ausência, de rostos pobres e rostos afortunados, mais raramente ainda desprendendo um sorriso. Quem o viu diz que é de ironia; pelo infortúnio, entenda-se.

Talvez por isso as camisas coloridas. Uma convalescença. Um luto à sua maneira própria. A recordação de quem eram e de quem as usava. Apenas a persistência forçada, todos os dias, da cor de outrora sobre a presença negra de cada hora vivida agora.
A maldição atinge todas as criaturas.

Ainda assim, por brincadeira há quem lhe chame canário, outros por prazer pela inflicção de sofrimento, outros pelas suas razões, alguns sem razão alguma. A maior razão de todas, contudo, e a meu ver, apenas uma: porque ele existe ainda, porque ele deixa.

A sua flor encarnada está branca, mas respira, vive, resiste, aguenta. E se maior canto de sobrevivência existe, aí está a sua magnificência plena, e de borla, a toda a hora com uma chávena de chá de tília ao lado, sempre vazia. Nunca se o apanha sequer a mexer a colher. Quem sabe há muito deixou de acreditar no açúcar.
Quem sabe...
Quem sabe de onde terá vindo o seu nome, nem a escassa família afastada que o conhece o explica devidamente. Quem sabe onde acabará, se hoje se amanhã, se definhando longamente ou desaparecendo num instante; também isto ninguém sabe.

De todos, só uma ou outra criança que o desconhece o chama e distrai. Há miúdas que lhe assobiam de longe. Até tipos que se sentam ao lado. Velhos bêbados há já demasiado tempo velhos e demasiado bêbados para notarem que se deixaram dormir a ele encostados. Um cão no chão bem perto dos pés. Um chato a provocar o desafio... E contudo, deste canário ali sentado, sempre que possível, no banco do canto, não sai uma palavra, nem um pio, só um olhar sereno e triste e abandonado, só um gesto vago a tirar da carteira o dinheiro já conhecido, só um sorriso cordial e tão fugaz que mal notado. Da sua boca não sai mais nada, nem explicações, nem perguntas, nem reclamações, nem lamentos. A tudo proclama com o seu canto próprio que só ele escuta e os outros conhecem de há muito, e sempre da mesma forma, sempre no mesmo tom, sempre com a mesma múltipla cor vestida, sempre assim, em silêncio, em completo e total silêncio.

Mudo?
Nem por isso.
Mas se há pássaros que não voam, porque não haveriam também os que não cantam?

(escrito em 2002.03.23)

Friday, October 08, 2004

Chamam-lhe “futre”

Jogava no pé-de-meia lá do canto da vila. Terra batida e por vezes traços feitos a cal. Houve um estúpido e morcão de todo o tamanho que ainda chegou a sugerir soda cáustica. Lambada no focinho e virava logo bailarino da antiga Rússia.
Bandalho, sovina, desprezível, rude, cru, duro, com o fulgor vermelho no rosto em corrida para pontapear ao poste e despejar o máximo de tosco palavreado até depauperar:
-Cabrão! Filho da puta! Foda-se p’ró caralho! Sorte da merda! É sempre a mesma foda de sorte! Maldita cona que te pariu, bola dum caralho!
Mas estaria condenado à pinga e à miséria de uma casa sem reboco e só laranja de preguiça?
Estaria condenada a Luísa que, lado a lado em barreira como as feitas entre as quatro linhas pelos colegas do Futre, haveria de se casar com ele um dia. E não muito tarde diria:
-Ai, que estou tão arrependida...
Mas que fazer a três filhos de ranho a escorrer pelas narinas e terra nos cantos das bocas a ser lambida sem desprezo em vez da comida que escasseia numa casa sem camas e só colchões despejados no chão de cimento em bruto onde os seixos que espreitam por ter ficado de fora da capa cinzenta são vistos como as únicas pérolas esfregadas à meia-luz da deita, como bolas de cristal a quem se pergunta sempre “quando é que isto acaba?, quando é que isto acaba?, quando é que eu saio daqui?...”
Mas não por agora.
Atirou-se à piscina.
-Queres que te dê cabo dessas fuças, mentiroso da merda!?! Ora diz lá outra vez que é mentira! Diz, seu grande filho-da-puta! Diz, se és homem! Ou não tens pila? Não tens pilinha? Queres que eu te dê uma puxadela, depois, no balneário, querida? É, fofa?... Ai p’ró caralho da menina, que nem sabe jogar futebol!...
Bola na mancha. Não vale a pena levantar uma perna ou esticar a luva, a bola é mesmo para entrar, ou à injúria se juntará o escárnio e uma raiva furibunda tal que a primeira canela adversária pelo caminho a vir só terá um destino: a maca.
Já está na rede.
Urros de vitória e alegria esfusiante como espuma a jorrar do gargalo espumante de champanhe. É levantado nos braços. Para os da mesma equipa pouco importa a ética da jogada, o vocabulário na defesa da honra ou mesmo a violência física. Está do lado deles. E a biqueira que chuta fora nunca a nós nos toca a perna... e daí, talvez toque, porque sempre atrás tem de vir a perna para novo balanço, e com ela o calcanhar, e quantas vezes não magoa tanto a retaguarda sem cautela que a frente em investida!...
Futre não quer saber de nada disso.
Acaba a partida e há palmadinhas nas costas de todos. Luísa na bancada a tinir pestanas e roer as unhas. Um joelho bate no outro de tal maneira e com tal força que o spray de cloreto no saco do médico já esteve mais longe de se evitar ser tirado.
Chama-lhe Futre por tudo isto.
Porque tem o cabelo curto à frente e comprido atrás, como se usava nos finais de 80 lá fora, nos princípios de 90 cá dentro. À cigano, dizem alguns em surdina e só à orelha do vizinho.
É má rês.
Vaidoso e mesquinho.
Perigosa cascavel.
Mentiroso como as unhas que se cortam mas sempre voltam a crescer.
Cabrão filho-da-puta!
Suíno fedorento a quem se diz sorrisos e fala acenos sempre afirmativos.
Mas que fazer?
Sai cá fora sem passar o sabão enquanto o banho.
Oscula a primeira que aparece a lamber com a língua de fora o batôn de cereja de efeito ‘gloss’, ou quem sabe não era, mas ficou pela saliva. Calhou, para sorte dele, que a primeira foi a certa, mas se não fosse continuava à mesma. Dizia que o amor é cego e que nem abrira os olhos. Uma qualquer cantiga. Elas quando caídas tropeçam em qualquer peta. Quando cheias dão chutos por qualquer coisa. Na maior parte do tempo nem numa nem noutra. Simplesmente não sabem nada. E é assim que ele pensa.
E dali só uma paragem, na horda que o espera na rua, sempre na mesma banca de pedra à entrada da tasca de bilhares e matrecos. Escusado será dizer que de tacos não pesca uma e esgota sempre os prémios de jogo em cervejas emborcadas e oferecidas e cruzes canhotas é desta bolas atiradas ao pequeno recinto de madeira a apanhar tareia.
Da família nunca irá anuir nada.
-Tá no ir?
-Baza.
-Solta a cavalada!
-É manada!
-É nada, é matilha!
-Tu é que só dizes burrada!
-Vê lá se queres mas é apanhar com a vara, meu grande cabrão!
E disto não se passa.
Investida e ameaça, aqui e ali uma pega, fustigada a atmosfera e chamuscada só por um pouco a crosta gordurosa de cada um que à sua vez toca, logo tudo sai em debandada que há melhores coisas a serem feitas à mesma hora, e à frente, claro, sempre o capitão de equipa, a glória renascida de outros tempos na relva portuguesa, a esgueirar-se com a bola por entre os defesas e a rematar para a baliza em golos sucessivos de grande beleza! O Futre, pois claro! Jogador da realeza e de papo inchado com luz acesa. Ninguém o bate. Ele é que dá os enxertos de porrada. Mas tudo soa a piada. E logo acaba.
Mas, perguntarão os curiosos, como pode tamanha animalidade subsistir à face do planeta sem escrúpulos e sem qualquer decência e ainda recolher taças e elogios e a melhor peça da montra?
Recordar-se-ão do lamento de Luísa, e dos três putos a dormir bem cedo porque não há luz paga a não ser a da lua que se reflecte no seixo polido pela pele bem seca desde cedo.
E da outra dica?
Isso mesmo.
Para quem só conta com a biqueira que chuta e não com o calcanhar que retorna a vida não dura muito sem uma mossa.
Houve nova semente que brotou ainda mais ruim. Houve depois tragédia num dia de chuva com uma poça disfarçada à plaina da água onde mergulhou o pé numa entorse que não repousaria a sarar.
Foi coisa de poucos meses.
Dali, só a talocha.
Ainda se arriscou a ser campeão na bola pequena, mas quem é que já ouviu falar de um Futre ao matreco a fazer carreira? Só de otários a cair de carrinho.
E o tempo passou.
Azar para a Luísa que em cedo tempo engravidou. Já a muleta fazia duas pernas e meia e ela queria tirá-lo fora, mas não a família, nem de um lado nem do outro. Depois veio a esperança, e o Futre sempre a bufar de cima a quem punha em causa que ele cedo voltaria. E mais não esperou. Não o regresso, mas outra queda, desta feita em estúpida travessia de rua fora da passadeira. Nem o seguro acudiu. O condutor pirou-se, apesar de nem ter qualquer culpa. Aqui já a família dela sacudia o capote, mas o cordel estava bem atado ao pescoço há muito, e a primeira chamava-se Joana. Não demorou a chegar o Filipe e a Manela. Hoje espera-se já que venha um Tiago ou talvez Teresa.
Não pára.
É Futre para a vida inteira.
Gaba-se a toda a hora.
Nenhuma rede aguenta o remate dele.
E ri-se.
Ela olha para o lado. Tem vergonha.
Ele emborca mais um bocado. Já tem barriga. Qualquer dia até dali sai nova criança. Ou se põe a dar toques com o joelho.
Não importa.
Do passado ou do presente não há diferença na atitude. E Futre fica.
Até um dia.
Porque depois da chuva lavar a pedra e o vento do tempo varrer a memória ficamos todos a chamar-nos igual e a pesar o mesmo grão de poeira.

(escrito em 2002.02.25)

Wednesday, October 06, 2004

Chamam-lhe “Adão Manuel”

Aqui na terra
chamam-me Adão Manuel,
olham de longe a apontar o dedo
e exclamam em sussurro
“é o tosco à cata de papel”,
que eu tão bem escuto do ouvido bom,
escuto enquanto dou mais um passo a um canto,
mais um passo a um canto sempre manco
mas nem por isso eu menos ando
e sempre encontro um bom pedaço
de cartão, cartolina, papel pardo ou caixote para ser espalmado,
e chego a todo o lado,
vou a toda a parte,
mais torto ou desajeitado
mas ser diferente também é arte.
Bem cedo a sopa sabe-me a manjar,
mesmo que na taça e colher de ferro,
Mas lá me diz o médico
“Isso também é preciso”,
diz-me sempre que o visito
enquanto escrevinha nos papelinhos letrinhas e rabiscos que não percebo
para a farmácia e farmacêutico,
mas nunca os uso,
não há dinheiro,
e ao médico só lá vou porque é bom negócio,
há sempre muitos papéis nos escritórios.
Em geral os melhores não são os mais brancos,
mas os pesados.
Aos bonitos e com cheiro guardo-os para mim,
já vou em mil,
passei a conta há pouco,
mas nunca se está satisfeito.
Quanto aos meus dias,
são todos iguais,
ou como aprendi num grosso bloco, idênticos;
Sempre a encher o carrinho que chia no veio,
sempre a empurrar os quilos
enquanto vou
mas também enquanto venho.
Mais um dia ganho.
E não me canso nunca a meio.
Por vezes ajudam-me;
“Ó Adão, chega aqui!”
E nisto dão-me os conhecidos jornais,
uma rapariguinha uma vez deu-me postais
e no meio dos embrulhos em cordel
já encontrei cartas de amor pingadas de mel
e rascunhos de testamentos
e desabafos repletos de fel
e até pautas de músicas
ou fotografias com paisagens distantes,
imagens pintadas com anjos, casas, coisas esquisitas que não percebo
e, confesso,
também já me cá chegaram senhoras com muito bom aspecto
de pele despida em posição lasciva e com lingerie cheia de luxúria,
um intumescimento a inchar-me o centro
ao ponto de me deixar sem jeito...
Outras mais velhas sem grande gosto
e algumas inacabadas e ainda sem rosto,
dizem que eram de um pintor que morreu,
deram tudo,
ou como se fala, “despacharam”
(acho que uma delas era a própria mãe).
Eu pouco me importo com as histórias,
o fim delas é todo o mesmo,
a prensa e a fábrica.
Daqui a uns meses caem cá de novo.
Creio que uma vez já me passou pelas mãos o mesmo papel que entreguei ao Sousa,
é ele quem me recebe e pesa e paga,
tem uma mulher simpática,
“Tome lá uma fatia de bolo, Adão!”,
costuma abusar do açúcar e da canela...
A mim já pouco importa.
A dentadura já há muito que deixou de ser folha nova.
Mas nem tudo são rosas.
No outro dia se não fosse um polícia
pela rua tinham-me abalroado à pressa.
Não há estradas para carrinhos de mão.
Eu também não tenho carta,
minha, pelo menos,
muitas de muitos já entreguei ao Sousa.
Há também uma velhota torta de língua,
chama-me “vadio” e outras coisas que aqui não digo;
Viro-lhe as costas;
Se ela soubesse...
Uma pena.
Tanta palavra desperdiçada na boca de tanta gente.
Tanta tinta escorrida para nada.
Foi o que já disse a uma jornalista.
Eu não vi a notícia na televisão
mas disseram-me que fiquei bem,
apenas a barba de alguns dias podia ter sido evitada.
Sou um papeleiro
sem férias, feriados e fins-de-semana,
não sou advogado.
A minha mãe chamava-me “pequeno carola”
e dizia que eu era o mais esperto de todos;
Tenho saudades dela.
Hoje o que ouço é sempre o mesmo:
“Lá vai o Adão ao papel”
“Olha o tosco do carrinho”
“Aquele ainda não percebeu que uma grama de cobre vale mais que um quilo de papel...”
“Vadio!, sai da frente!”
...
Nesta terra chamam-me muita coisa.
O engraçado é que ainda ninguém percebeu porque gosto de juntar papel;
Porque leio,
porque descubro mais sobre o mundo por onde não ando,
porque me rio com os bonecos,
porque eu não quero ser rico de dinheiro...
...mas isto são frases feitas;
Eu mesmo também não sei porque o faço.
Chamam-me tanta coisa e nenhuma me parece em cheio.
Eu também não sei ao certo como me chamo,
só o primeiro e segundo,
os outros esqueci há muito.
Cá para mim,
acho que vim parar a isto como um pássaro pára num ramo no meio de tantos.
Chamam-lhe destino.
Chamam-lhe outras coisas também,
“escolha”, “objectivo”, “azar”, “sorte”, “acaso”...
Porque também a idade já não dá para pensar de outro modo.
Eu acho tudo engraçado,
sobretudo ao que dizia a minha mãe:
“Adão Manuel, um dia ainda hás-de ser um grande camionista,
ou quem sabe,
talvez até venhas a ter a tua empresa e toda a gente da terra te conheça!”
Acho que ela sabia mais do que aparentava...


(escrito em 2002.03.28)

Friday, October 01, 2004

Chamam-lhe “A Conheces”

Numa comum segunda-feira de um mês de Dezembro bem frio, manhã soturna e sossegada apesar de um imenso corrupio, um manto discreto cobre a cidade que desperta mal adormece.
É gente.
Os comboios existem porque deslizam. Nem é preciso puxar muito por eles mal embalam sobre os carris lisos e aprumados paralelamente em rectas e curvas desfeitas.
Agradecem os que encostam as cabeças aos vidros.
Miúdas negras de carapinhas esticadas com gel marcam de gordura a face translúcida. Um homem de velho como eufemismo baba-se sobre a gola do casaco. A senhora em frente atenta ao livro fino. A do lado presa à mesma palavra do mesmo artigo da mesma página da mesma revista, que é como quem diz distante e atenta a um pensamento, ou se calhar dormente latente. Em pé um ou dois tipos conversam. Algures alguns ajeitam-se nas cadeiras. Lá fora breu. Lá fora o mundo aparece a quem o olha num breve torcer de pescoço como nada. Só uma mancha escura pontilhada de luzes redondas na ponta que deixam uma cauda comprida à medida que o comboio avança. Lá fora o rosto escuro soa rouco e grave. Os motores em movimento. Em frente um rapaz estuda. Mãos escuras grossas e gretadas, entre os dedos uma caneta e um livro de inglês avançado, bem aberto; quem diria; ainda nem 7 da manhã nas horas; e olhar desperto; pequenos raios vermelhos de sangue desenham a branca corola do olho; roupa larga e pouca; a boca fechada, pulposa; o corpo grande assim que se levanta assim que o comboio chega.
Estranho e misterioso mundo este das manhãs obscuras e soturnas de gente muda e enregelada pelo sol que ainda tarda cair sobre os telhados e as ruas da cidade que desperta.
Abandonam todos as carruagens e lançam-se em pressas.
As malas balançam e um casaco com duas faixas reflectoras abraça todos os olhares que se fixavam a meia altura baixa, entre o chão e a distância dos seguintes 3 ou 4 passos a dar. Os monitores estão de luto e apenas exibem em inglês um aviso de manutenção periódica; o tipo grande de livro entre os dedos também terá lido isto de certeza.
Os cachecóis em alta fazem dos pescoços uma lembrança.
Cigarros apressados prolongam o comboio para os passeios; mil e uma locomotivas para outras tantas carruagens humanas.
E eis então que surge ela.
Mediana, cabelo comprido e castanho claro, para o seco, escovado a custo em frente ao espelho antigo, um sorriso dilatado e congelado, os cantos dos olhos repuxados para trás por isso, olhos de um azul claro, voz feminina e audível, voz a soar a todos um dia, hoje, para já, a senhora baixa e gorda ali a dois passos:
-Olá, como está? Tem visto a minha mãe? Está boa? Está boa, está. Temos de ir trabalhar já agora, não é? Vamos lá! Vamos, eu também vou andando. Vou já. Adeus!
E nisto entrega um beijo na cara à mulher estupefacta.
Corre e atira-se a um tipo de cor que conversava com o amigo do lado:
-Aqui em Entrecampos há gajos bons, pá! Então?, ‘tás curtido!? E logo?, vais ao baile? Queres ir comigo? ‘Tás muita giro!... Tchau! Tenho d’ir!
E assim como surgiu desaparece.
O tipo olha para trás e de riso espetado pergunta-me a tiro:
-Conheces?
Eu sorrio e aceno que não.
Ele volta-se para o amigo ao lado e ambos se riem. Depois, instantaneamente, como que assustado e lembrando quase do gás ligado em casa, pára, leva a mão ao bolso do casaco; dois segundos depois retoma o passo que levava, rindo-se, de novo, a comentar a personagem em vez do assunto que ambos levavam em viagem.
Lá ao fundo, de ‘Kispo’ amarelo até aos pés, mochila grande de escola às costas, uma miúda aos saltos e correrias para trás e para a frente vai desaparecendo, entre a chusma que evita a chuva, ainda assim obrigando alguém a parar um segundo e despedindo-se logo de seguida.
-Está a chover, não está!? Que cena!... Que cena, pá!... Cena lixada!... Tchau! Tenho de ir embora! Não te molhes!
E parte para outra:
-Olá!
E para outra:
-A minha mãe pôs-me uma omolete para comer hoje! Gostas de chantilly!?
E outra ainda:
-...Lá na rua há com cada gajo mais bom!!... Gostas de gajos?
E mais outra:
-Achas que a Penélope da novela vai engatar o Filipe? Queres ir comigo ao cinema? Não há direitos, pá! Não há mesmo. É uma cena!...
E ainda:
-Logo vou ver a minha tia que faz anos. Queres vir? Faz 50. Faz bolos de noz. Olha... sabes... tens uma mala muita linda. E olha... ... Tchau. Um beijinho! Tenho d’ir!
E a panóplia de entrevistas oferecidas a repetir-se todos os dias ainda enquanto a noite está pousada na madrugada. E se alguém pára? Ninguém pára. Só depois, para ver se está lá a carteira, ou, na quase totalidade dos casos (presenciados pela minha pessoa) para perguntar à mais próxima:
-Conhece?
-Conheces?
-Conhece a menina?
-Sabe quem é?
-Conhece esta doida?
-Quem é?
-A senhora conhece?
-Conhece-a de algum lado?
-...
Conhece, conheces, conhece, conhecemos, conheceis, conhecem...
Conhecemos todos, ou quase todos, um quase todos a caminho dos todos que viajam a esta mesma hora, esta estranha criatura, miúda agitada como tresloucada e perdida nas frases desconexas e investidas abruptas e assustadas até por vezes aos incautos e perdidos em pensamentos matinais transeuntes pouco habituados a estas coisas de seres humanos que falam sem lhes terem perguntado ou pedido alguma coisa.
A todos, a pouco e pouco, se habitua e passa já um nome, assim que um desconhecido ali perto é abordado, e enquanto em volta os outros olham e recordam a sua vez que já lá foi, vão-se explicando, amigos ou meros conhecidos que caminham a lado e vêem a cena pela primeira vez:
-É “A conheces”.
Alguns ainda perguntam de volta:
-Quem?
-“A Conheces”.
E com o passar do tempo, os meses deixando de receber a luz tão tarde e desaparecendo os cachecóis dos pescoços de novo aparecidos, o tempo amadurecendo e comunicando a todos o seu aumento, vão-se levando já na brincadeira os assaltos de conversa rápida d’A Conheces.
-Aquela ali é “A Conheces”, é um pouco doida, a rapariga, mas boa pessoa...
-Ó “Conheces”, chega aqui, filha! Toma lá este cacho de uvas, para a tua sobremesa!
-É “A Conheces”... uma rapariga assim meio... meio chalupa... Mete-se com as pessoas.
-...
“A Conheces”.
A desaparecer de ‘Kispo’ amarelo por entre a chusma.
Um comboio passa na linha enquanto tudo se desvanece na cabeça de quem lá vinha. E a manhã clareia-se. E os cafés enchem-se. Daqui a alguns meses alguns estarão a uma mesa a fazer um exame final de inglês 5. “A Conheces” ainda andará pelas bocas dos madrugadores à boleia de sono em direcção aos afazeres que tiverem a horas indecentes.
“A Conheces”...
A meter-se com este e aquele.
A cumprimentar senhoras de meia-idade e velhotas de passo torto e tonto e miúdas como ela.
Conheces?
É “A Conheces”...
“A Conheces”...
Mas afinal, alguém a conhece?
De tudo isto só posso dizer o mesmo que lhe disse a ela: Até logo, adeus; foi um prazer.


(escrito em 2004.01.22)