Tuesday, August 16, 2005

Chamam-lhe “Maria, a Porta-Chaves"

Chamam-lhe assim. Porta-chaves.
Pela mão. Um dia. Um cão. Hoje um simples porta-chaves. Frio. Polido. Entre os dedos. Grossos. Mais grossos do que eram. Na mão cheia. Não há pouco tempo.

Há quem diga. Por aí. Que se chamava Maria. Maria. Um nome ausente. Já de si ausente. Neutro. Quase vazio. Maria era assim. Gente. Como tanta gente. Só mais uma. A sair às horas. Parecidas. Matinais. Tardias. Horas tolas. Importantes. Macias. Duras. Obrigatórias horas. Minutos a disfarçarem o tempo igual.

Passeava. Pelo parque. Um jardim. Verde. Escasso. Torto. De relva entornada aos dias. Passeava a passos corridos. A fugir de um cão. Russo. Russo de nome. Pêlo preto. Corpo agigantado. A fugir e a gritar. Russo! Russo! Russo! Via-se e ouvia-se. Também. A rir. Não raras vezes a rir. Russo pela trela. Solto na relva. Comprida. Assim à tarde. Às horas tardias. Do dia. Do final de dia. Claro, o final de dia... O sol a baixar. No passeio uma carripana. Branca. Partida. A estacionar. Um toque atrás. Outro à frente. Uma multidão de putos. No passeio. Mochilas às costas. O etecetera. Mais isto e aquilo. Passageiro. Tudo. Tudo passageiro. Como tudo. E ali no meio. No parque. Maria. A porta-chaves. Não então. Mas agora. Nessa altura apenas Maria. Maria & Russo. Entre corridas. Apanhada. Maria vencida. Por Russo. Por outros? Russo na peugada. Maria corrida. O cão grande e preto de pêlo curto. A relva. Longa. Comprida. Farta. Verde. Muito verde. E Maria. Sobre a relva. Russo vem cá. Russo corre. E Russo corria. Aos olhos de Maria. E outros.

Maria apertava. A trela. As ideias. Algumas músicas. Sonhos. O porta-chaves. No bolso. Nas mãos cheias. Um sorriso. Solto. Russo roçava. Nas pernas. Refugia. Maria olhava. Perdia. Nas horas. No tempo. Pensamentos. Mais pensamentos. De uma casa? Um carro? Amigos. Jantares. Um romance. Fotografias. Um beijo. Um amante. Um homem? Um homem. O homem. E ali à volta. Tantos. Aos volantes. A pé. De fato. Com as crianças. De pasta. Sacos das compras. Bigode. Cabeça rapada. Novos. Jovens. Adolescentes. Bancários. Velhos. Reformados. Negociantes. Perdidos. Emigrantes. Desconhecidos.

E Russo corre.
Maria corre.
Um tipo. Um dia. Quem sabe.
Russo! Vem cá!
E ali perto. Na relva. Um tipo. A olhar. Não é a primeira vez. Houve outras.
Maria olha. Faz que não. Vê. Atira e corre. Com Russo. À frente. Atrás. Passa as mãos. Pelo pêlo. Pela baba. Olhos. Nos olhos. De quem vê. De quem passa. Perto. Um homem casado? Solteiro. Quem sabe... Hoje. Um dia qualquer. Um dia. Hoje? Um dia qualquer. Um dia. Um dia. Quando vier. Um dia. De cada vez. Podia ser este. Este dia. Este homem. Ou outro. Outro qualquer. Como o que se vê. A cada hora. Nos sonhos. Nas ideias. De revista. De memória. De conversa. De cinema. De letras. Músicas. Poemas. Rascunhos nas portas. Blocos de notas. Atrás de uma lista de supermercado...

Desejos.

Maria olha. Mais uma vez. Faz que. Mas olha. Outra vez. Russo! E olha. E o tipo olha. Faz que. Mas olha. Corre. Atrás. A passo. E pára. Assoa. Limpa. Tosse. Quem sabe. Sonha? Também? Maria corre. Atrás. Russo! Russo não pára. Corre. Corre. Corre.

Boa-tarde.
Bom-dia.
Olá.
Está sempre aqui...
Palavras. Muitas. Parecem sempre. Muitas. Quem as recorda? A todas? As primeiras? As primeiras mesmo. Aquelas. Essas. A rasgar. Tesouras. Bombas. Mísseis. Atacantes. Defensivas. Assustadas. Medrosas. Brutais. Toma. Aqui vai. Esta. Outra. Aquela. Agora esta... Sem saber. Sem dar por elas.
Os olhos ficam.
Olhos. Castanhos. Ambos. Cabelos. Pele. Sardas. Lábios. Grossos. Finos.
Mas os olhos. Esses. Ficam.

Quem fala? Quem sabe... Ouve-se. Mas os olhos. Esses. É que falam. Nada importam as bocas. E ele fala. Que diz? Ouviste bem, Maria? Um sorriso. Um convite. O sol põe-se. Vem a noite. Tens um convite. Um jantar. Russo! Vem cá! Sorrisos. Tremores. Por dentro. Por fora. Nas pernas. Joelhos. Dentes brancos. Nervosos. A sorrir. Uma paz. Convulsa. Festiva. Repressão à força. Um aceno. Cabelo atrás da orelha. Troca de números. Russo! Vem aqui!

E aqui vem. Mais um dia. Outro. Mais. Outro. E outro. Ainda. Outro.
Um jantar.
Cinema.
Esplanadas.
Um café.
Uma fotografia.
Uma história.
Outra.
Outra ainda.
O passar do tempo.
O silêncio.
De volta.
Um dia.
Outro.
Teatro.
Farsa.
Um passeio.
De carro. Um belo carro. Comprido. De cor forte. Vermelho. A desviar. Por entre. Rápido. Esquivo. Fugaz. Brilhante. Viçoso.
E o mar...

Ambos. Parados. Sentados. No carro. Vermelho. Os dias atrás. A memória cheia. Conversas. Histórias. Partilha. Uma mão. Pele. Na pele. Com pele. Macia. Lisa. Um aperto. Dentro. Bem dentro. Bem cá dentro. No centro. Quente. Pulsante. Mais quente. E os olhos. Nos olhos. O mar ao longe. Os olhos perto. Saliva extinta. O chão. Fugidio. Num beijo. Seco. Curto. Lábios colados. E os rostos. Inertes. A recuperar. Tontos. Um sorriso. A felicidade. Um instante. Acreditas? Que é para sempre? É para sempre. É sempre. É sempre para sempre. Sempre. Como nunca. Ambos para sempre.

A relva seca. O sol. Alto. Bruto. Longo. Distante. Não foge. Fica. Forte. A cuspir. Raios. Coriscos. O campo evade-se. De gente. De cães. De pássaros. Só lixo. Folhas. Papéis por assinar. Até que o vento. E a sombra. Longos. A tarde. E Russo. E Maria. E o tipo. Na corrida. Curta. O abraço. Vai Russo! Vai!

Jantar. Cinema. Esplanadas. Café. Fotografias. Histórias. O passar do tempo. Silêncio. Um dia. Outro. Teatro. Leitura. Jardins. Hotéis. Pousada. Praia. A cama. A teia. As ligas. As rendas. Fantasias. Prazeres. Farsa. Passeios. Gelados. Restaurantes. Tascas. Copos. Noitadas. Viagens. De carro. Um belo carro. Vermelho. A desviar por entre. E mais horas. E dias. Telefone. Rápido. Medo? Uma espera. Outra. Outra ainda. Outra?

A tarde chega. A sombra parte. A relva. Escura. A noite. Negra.
Russo. Vem.
Em casa. A campainha. O elevador. A porta aberta. Uma história. E mais outra. Outra? Outra... Outra vez? Não. Só outra. A lágrima.
Russo, sai...

A sala. As velas. A colcha. Revistas. Mesa torta. TV ausente. Rosto. Rostos. Nos rostos. Rubros. Húmidos. Desculpas. Justificações. E um pedido. Um desejo? Vem viver comigo. Só assim. Tem de ser. Assim. Só assim. Assim consigo. Só assim...
Russo, rua.

E Russo vai. Maria também. À tarde. Seguinte. Pensativa. Quente. Lágrima fixa. Que fazer? Um homem. O homem. Uma casa nova. Os dois. Só ela. E ele. E a casa. Com quarto. Cama larga. Uma sala. A dois. Uma cozinha. Para os dois. Dois pratos. Dois copos. Duas cadeiras puxadas. Duas almofadas. Duas toalhas. Duas escovas. Duas marcas. A mesma ideia. O mesmo problema. Russo! Russo! Russo! Vai! Corre! Vai! E Russo vai. Corre. Passeia. Fareja. Isto e aquilo. Quase tudo. Quase. Quase tudo. Corre de volta. A trela. Presa. De novo. Ambos de volta.

Maria liga. Telefona. Espera. Aguarda. Angustia. De novo. Tenta. Outra. Outra vez. Pousa. Olha. A casa. As contas. A renda. A vida. O chão. Tijoleira. Paredes claras. Sujas. Russo. Na sala. Ali. Perto. À espera. De nada. E Maria tenta. De novo. Abafa o estômago. A voz responde. Maria fala. Sem forças. Acede. Que sim. Que sim. Os dois. Só os dois. Eu e tu. Nós. Os dois. O Russo... Sai. Hei-de ver. Vou ver. Tenho de ver. Ouve. Escuta. Promete. Enleva. Macia. Mais isto. Aquilo. Um dia. Verás. Um dia. Verás. Todos os dias. Todos. Os dois. Juntos. Bom. Será bom. Muito bom. Tremendamente bom. Como todos. Sim. Como todos. Como os outros. Que passam. Cruzam. Na rua. No parque. Ao volante. A pé. De fato. Com as crianças. De pasta. Sacos das compras. Bigode. Cabeça rapada. Novos. Jovens. Adolescentes. Bancários. Velhos. Reformados. Negociantes. Perdidos. Emigrantes. Desconhecidos. Promessas. Eventos. Quem sabe...

Um dia.
Outro.
Dia.
Tarde.
Noite.
Escura. Lua ausente. Terra fria. E Russo na carpete. De cores. Roídas. Gastas. Velhas. Fios fracos. Farrapos. Uma bola. Ao pé. Massacrada. Buracos. Caretas. Uma máscara. É uma máscara. Uma personagem. Uma visita. Uma gargalhada. Uma tragédia. Três olhos? Uma besta? Uma escultura. Rupestre. Bolestre. Canina. Faminta. Saliva em cascata. E Maria olha. Sorridente. Afaga. Balbucia. Olha. Nos olhos. Olhos nos olhos. Sobrancelhas erguidas. Pesar tardio. E talvez não. Quem sabe... Agora? Não. Não pode. Já não se pode. Não dá. Amanhã vê-se. Amanhã vejo. Onde ficas. Com quem ficas. Tenho de ver. Amanhã. De amanhã não passa. Só eu. Passo. Passo-te. Eu... Não dá. Não posso. Não posso. Não consigo. Não posso. Nunca. Sempre. O mesmo. Não quero.

Um ring.
Dois.
A voz. A mesma. Do corpo. Daquele corpo. Daquele carro. Fugidio. Esquivo. Forte. Vermelho. Comprido. Um soluço. Um pedido. Os três. Só os três. Juntos. Silêncio. Insisto. Os três. Silêncio. Insisto de novo. E tu? Que dizes. Silêncio. Suspiro. Não dá. Não pode ser. A escolha é tua. Não dá...

O dia nasce. A tarde cresce. A relva finda. A máquina limpa. Outra que vem e aspira. A carrinha parte. A luz fraca lambe. A erva. A relva. A terra. Um malmequer. Uma caneca partida. Descoberta. E um poio. E uma prece. Numa bola. De papel. Quadriculado. Aprisionada. Riscada. De lado. Junto ao furo. Perdeu-se? Arrependeu-se? Mais um soluço. Russo! Corre! Vai lá! Corre! Corre, Russo! Deixa... A bola salta. A máscara. Oval. Massacrada. De novo. Irrequieta. Viril. Possante. Vibrante. Sem relva longa. Sem travessas. Sem barreiras. A brilhar. Na pouca luz. A descer. Veloz. E Russo atrás. Maria ao longe. Distante. Desatenta. Russo a descer. Maria a ver. Agora. Só agora. Agora. Só. A bola. Alta. A embater. Rebater. Ultrapassar. Por entre. Por cima. Por baixo. E Russo. A correr. Mais perto. Mais alto. Por entre. Por cima. Por baixo. A estrada perto. Já perto. Maria ao longe. Russo mais perto. A bola tosca. A parar. Devagar. Oval. Avanço curto. Avanço maior. Pelo passeio. Cimento. Torto. Aberto e tapado. Vezes sem conta. Irregular. Mais um centímetro. Russo mais perto. A bola a parar. Maria. De longe. A correr. Atrás. De Russo. Pêlo preto. Curto. Patas fortes. A parar. Focinho comprido. Boca aberta. Caninos brilhantes. Saliva a escorrer. Bola à frente. A descer. A guia. O passeio. Uma sarjeta. Por cima. O alcatrão. A terra encostada. Um metro só. Apenas isso. Um metro. E Russo atrás. Da bola. A morder. A mordê-la. Maria ao longe. A gritar. Russo aqui! Russo aqui! Volta! E nisto um carro. Veloz. Vermelho. Sem bem se ver. A bater. De frente. Em Russo. A bola a rolar. De novo. Maria. Ao longe. Em silêncio.


A estrada negra. Manchada. De negro. De óleo. De sangue. Vermelho. Uma tontura. Um grito. Um susto. Um desalento. Um tanque cheio. Um dilúvio seco. Nada a sair. Sem sair. Sem conseguir sair. As pernas. Fracas. Passo a passo. Sem crer. Tudo assim. Sem crer. Sempre. Como nunca.
A trela na mão.
As chaves na outra.
A noite a cair baixinho sem um só pio que diga alguma coisa ou um conforto de um corpo forte a segurar outro corpo entre as chamas pretas de uma perda igual a outras e tantas outras todos os dias iguais a outros e tantos outros...

Um dia.

Outro.

Mais um. Mais um dia. Mais um. Mais um dia. Mais um. Mais um dia. Um dia. Um dia. Um dia. Um dia. Um dia. O mesmo. O mesmo dia. Dia. Dia. Dia. O mesmo dia. Mais um. Mais um. Mais um. Mais u...

Sol. Tarde. Chuva. Noite. Lua. Sossego. Janelas. Lâmpadas. Acesas. Gargalhadas. Por cima. No andar de cima. Do lado. Uma criança que chora. A noite lá fora. TV’s acesas. Camas rangidas. Um edredão de penas. Sem uma. Sem mais uma. Mais uma. Sem uma. Menos uma. Menos uma. Menos uma. Menos uma.

Quem é aquela?
Chamam-lhe Maria. A porta-chaves. Ia casar. Viver com outro. Ficou sozinha.

Quem é aquela?
Aquela ali?
Aquela. Na relva.
Chamam-lhe a porta-chaves. Trazia trela. Um cão. Até marido. Um dia não sei. Ficou sem nada. Vem para aqui. Assim. Só a pé. Sozinha. A mexer nas chaves. Entre os dedos. Grossos. Mais grossos do que eram. Na mão cheia.

Quem é aquela?
Quem é você?
Sou novo. Por aqui. Cheguei agora. Há dias.
Aquela já é velha. Chama-se Maria.
Maria?
Ou Porta-Chaves.
Porquê?
Morreu-lhe o cão. Com quem vivia.
Anda triste...
Pudera. Era o cão dela.
Como era?
Quem?
O cão. Dela.
Era grande. Um grande cão. Grande e preto.
E agora?
Agora o quê?
Com quem anda?
Não vê!? Anda sozinha. Sempre. Assim. Com aquelas chaves. Nas mãos. Mais nada.

Um passo à frente. Outro ainda. Na mão a trela. A mão firme. Masculina. Pêlos nas costas. Da mão. Larga. Mão que assina. Mão que escreve. Mão que pensa. Mão que chora. Ri. Amargura. Aguarda. Avança. Hesita. Risca. Rasga. Rompe. Ruge. Reza. Prega. Recomeça. Mas mais. Muito mais. Mais que isso. Crê. Puxa. Puxa para si. Kassy. Anda! Anda, Kassy. Vamos ali. Vamos.
A relva comprida. Os passos fofos. O som. Sem som. O passo. Sem eco. Só marca. E ele assim. Passo a passo. Mais um passo. Para Maria. A Porta-Chaves. Que teve. Isto. E aquilo. Um dia. E não teve nada. Ou quase. Teve. E não teve. Maria assim. Ou Menos. À espera. Quem sabe. E daí. Quem sabe...

Kassy, senta. Boa-tarde. Olá... Está sempre aqui?
E Maria sorri. Olha-o. Olha. Roda as chaves. No porta-chaves. Pára. Mexe o pé. Não responde. Diz. Nada. Mete as mãos. E as chaves. Nos bolsos. Parada. E fica. Ali. Ali fica. E ele insiste. Mas Maria. Assim. Como é. Agora. Diz. Nada.
Ele sorri. Acena. Cumprimenta. Despede-se. Anda, Kassy. Anda...

Ela chama-se Maria. Chamam-lhe a porta-chaves. Ia casar. Viver com outro. Ficou sozinha.
Ele vai-se embora.


(escrito em 2004.09.20)

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