Friday, October 01, 2004

Chamam-lhe “A Conheces”

Numa comum segunda-feira de um mês de Dezembro bem frio, manhã soturna e sossegada apesar de um imenso corrupio, um manto discreto cobre a cidade que desperta mal adormece.
É gente.
Os comboios existem porque deslizam. Nem é preciso puxar muito por eles mal embalam sobre os carris lisos e aprumados paralelamente em rectas e curvas desfeitas.
Agradecem os que encostam as cabeças aos vidros.
Miúdas negras de carapinhas esticadas com gel marcam de gordura a face translúcida. Um homem de velho como eufemismo baba-se sobre a gola do casaco. A senhora em frente atenta ao livro fino. A do lado presa à mesma palavra do mesmo artigo da mesma página da mesma revista, que é como quem diz distante e atenta a um pensamento, ou se calhar dormente latente. Em pé um ou dois tipos conversam. Algures alguns ajeitam-se nas cadeiras. Lá fora breu. Lá fora o mundo aparece a quem o olha num breve torcer de pescoço como nada. Só uma mancha escura pontilhada de luzes redondas na ponta que deixam uma cauda comprida à medida que o comboio avança. Lá fora o rosto escuro soa rouco e grave. Os motores em movimento. Em frente um rapaz estuda. Mãos escuras grossas e gretadas, entre os dedos uma caneta e um livro de inglês avançado, bem aberto; quem diria; ainda nem 7 da manhã nas horas; e olhar desperto; pequenos raios vermelhos de sangue desenham a branca corola do olho; roupa larga e pouca; a boca fechada, pulposa; o corpo grande assim que se levanta assim que o comboio chega.
Estranho e misterioso mundo este das manhãs obscuras e soturnas de gente muda e enregelada pelo sol que ainda tarda cair sobre os telhados e as ruas da cidade que desperta.
Abandonam todos as carruagens e lançam-se em pressas.
As malas balançam e um casaco com duas faixas reflectoras abraça todos os olhares que se fixavam a meia altura baixa, entre o chão e a distância dos seguintes 3 ou 4 passos a dar. Os monitores estão de luto e apenas exibem em inglês um aviso de manutenção periódica; o tipo grande de livro entre os dedos também terá lido isto de certeza.
Os cachecóis em alta fazem dos pescoços uma lembrança.
Cigarros apressados prolongam o comboio para os passeios; mil e uma locomotivas para outras tantas carruagens humanas.
E eis então que surge ela.
Mediana, cabelo comprido e castanho claro, para o seco, escovado a custo em frente ao espelho antigo, um sorriso dilatado e congelado, os cantos dos olhos repuxados para trás por isso, olhos de um azul claro, voz feminina e audível, voz a soar a todos um dia, hoje, para já, a senhora baixa e gorda ali a dois passos:
-Olá, como está? Tem visto a minha mãe? Está boa? Está boa, está. Temos de ir trabalhar já agora, não é? Vamos lá! Vamos, eu também vou andando. Vou já. Adeus!
E nisto entrega um beijo na cara à mulher estupefacta.
Corre e atira-se a um tipo de cor que conversava com o amigo do lado:
-Aqui em Entrecampos há gajos bons, pá! Então?, ‘tás curtido!? E logo?, vais ao baile? Queres ir comigo? ‘Tás muita giro!... Tchau! Tenho d’ir!
E assim como surgiu desaparece.
O tipo olha para trás e de riso espetado pergunta-me a tiro:
-Conheces?
Eu sorrio e aceno que não.
Ele volta-se para o amigo ao lado e ambos se riem. Depois, instantaneamente, como que assustado e lembrando quase do gás ligado em casa, pára, leva a mão ao bolso do casaco; dois segundos depois retoma o passo que levava, rindo-se, de novo, a comentar a personagem em vez do assunto que ambos levavam em viagem.
Lá ao fundo, de ‘Kispo’ amarelo até aos pés, mochila grande de escola às costas, uma miúda aos saltos e correrias para trás e para a frente vai desaparecendo, entre a chusma que evita a chuva, ainda assim obrigando alguém a parar um segundo e despedindo-se logo de seguida.
-Está a chover, não está!? Que cena!... Que cena, pá!... Cena lixada!... Tchau! Tenho de ir embora! Não te molhes!
E parte para outra:
-Olá!
E para outra:
-A minha mãe pôs-me uma omolete para comer hoje! Gostas de chantilly!?
E outra ainda:
-...Lá na rua há com cada gajo mais bom!!... Gostas de gajos?
E mais outra:
-Achas que a Penélope da novela vai engatar o Filipe? Queres ir comigo ao cinema? Não há direitos, pá! Não há mesmo. É uma cena!...
E ainda:
-Logo vou ver a minha tia que faz anos. Queres vir? Faz 50. Faz bolos de noz. Olha... sabes... tens uma mala muita linda. E olha... ... Tchau. Um beijinho! Tenho d’ir!
E a panóplia de entrevistas oferecidas a repetir-se todos os dias ainda enquanto a noite está pousada na madrugada. E se alguém pára? Ninguém pára. Só depois, para ver se está lá a carteira, ou, na quase totalidade dos casos (presenciados pela minha pessoa) para perguntar à mais próxima:
-Conhece?
-Conheces?
-Conhece a menina?
-Sabe quem é?
-Conhece esta doida?
-Quem é?
-A senhora conhece?
-Conhece-a de algum lado?
-...
Conhece, conheces, conhece, conhecemos, conheceis, conhecem...
Conhecemos todos, ou quase todos, um quase todos a caminho dos todos que viajam a esta mesma hora, esta estranha criatura, miúda agitada como tresloucada e perdida nas frases desconexas e investidas abruptas e assustadas até por vezes aos incautos e perdidos em pensamentos matinais transeuntes pouco habituados a estas coisas de seres humanos que falam sem lhes terem perguntado ou pedido alguma coisa.
A todos, a pouco e pouco, se habitua e passa já um nome, assim que um desconhecido ali perto é abordado, e enquanto em volta os outros olham e recordam a sua vez que já lá foi, vão-se explicando, amigos ou meros conhecidos que caminham a lado e vêem a cena pela primeira vez:
-É “A conheces”.
Alguns ainda perguntam de volta:
-Quem?
-“A Conheces”.
E com o passar do tempo, os meses deixando de receber a luz tão tarde e desaparecendo os cachecóis dos pescoços de novo aparecidos, o tempo amadurecendo e comunicando a todos o seu aumento, vão-se levando já na brincadeira os assaltos de conversa rápida d’A Conheces.
-Aquela ali é “A Conheces”, é um pouco doida, a rapariga, mas boa pessoa...
-Ó “Conheces”, chega aqui, filha! Toma lá este cacho de uvas, para a tua sobremesa!
-É “A Conheces”... uma rapariga assim meio... meio chalupa... Mete-se com as pessoas.
-...
“A Conheces”.
A desaparecer de ‘Kispo’ amarelo por entre a chusma.
Um comboio passa na linha enquanto tudo se desvanece na cabeça de quem lá vinha. E a manhã clareia-se. E os cafés enchem-se. Daqui a alguns meses alguns estarão a uma mesa a fazer um exame final de inglês 5. “A Conheces” ainda andará pelas bocas dos madrugadores à boleia de sono em direcção aos afazeres que tiverem a horas indecentes.
“A Conheces”...
A meter-se com este e aquele.
A cumprimentar senhoras de meia-idade e velhotas de passo torto e tonto e miúdas como ela.
Conheces?
É “A Conheces”...
“A Conheces”...
Mas afinal, alguém a conhece?
De tudo isto só posso dizer o mesmo que lhe disse a ela: Até logo, adeus; foi um prazer.


(escrito em 2004.01.22)


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