Friday, October 22, 2004

Chamam-lhe “o espreita”

Sempre de parka verde sobre o corpo. As calças, de fazenda. Todas elas com todas as modas dos últimos 15 anos. Há quem aprenda história. Uma rapariga ‘freak’ de carne cheia inveja o modelo cinza prata. As mais gastas as púrpura, em reflexos a cinza e branco nas coxas. Não é estilo, mas a cor tingida aí desaparecida pela lima das mãos. A mão esquerda deixa-a quase sempre pendurada por preguiça; só a levanta quando é preciso coçar a testa, local normalmente visitado em insistente frequência pela mão direita. Dois ou três dedos bastam para afagar a pele e as raízes de uns quantos cabelos desgrenhados e grisalhos, secos e ralos, de onde caem ocasionais flocos de caspa. A boca deixa-se estar semi-aberta; fecha-a e abre-a com alguma regularidade (não tanta quanto a assídua massagem na testa e o meticuloso investigar das raízes capilares frontais) mas raramente para bocejar alguma palavra. É apenas ar que por ali entra e sai, vagarosamente, sem deslocar uma chama, melhor que um cantor de ópera. Os olhos, desengraçados e com as pálpebras assimetricamente dispostas, dão um ar tosco e esgrouviado sob as lentes amplas dos óculos do mesmo período perdido no passado que as calças.

Contudo, isso parecem ser pormenores ou meros decoros a polir a personagem, para quem as pessoas olham com algum desdém (mais elas) e distância medida com segurança de sobra e receio de contágio de alguma coisa (mais eles).

Todos os que o comentaram a duas ou mais vozes lhe chamam já “o espreita”, porque normalmente é isso que faz a toda a hora e em toda a vida que se lhe conhece, por onde quer que ande ou esteja parado.

No autocarro inclina-se e vê os artigos do jornal aberto no banco da frente. Raramente esboça um sentimento que nos mostre ironia, humor, preocupação ou mesmo compreensão pelas gordas dos títulos que se crê chega a ler. Olha também frequentemente os ponteiros do seu relógio e os das outras pessoas, descaradamente, insinuadoramente, despreocupadamente. Na Primavera e no Verão o interesse (ou simples entretenimento) estende-se aos decotes das raparigas e às coxas semi-nuas das que se sentam e trazem saias curtas que mais sobem com os bancos. Mas depois lá volta a coçar a testa com dois ou três dedos, quase sempre da mão direita, já se disse.

Os pés deixa-os soltos, a pousar no chão apenas pelos calcanhares, mas com mais incidência num deles, por causa das pernas cruzadas.

Quando o veículo onde segue balança, confia mais na mão direita para se segurar e aguentar na posição que leva desde a partida. Contudo, não aguenta por muito tempo a espera, e mesmo no meio da turbulência acaba por erguer a esquerda para renovar o labor de cuidar da testa e seus nós de fios de cabelo já entrelaçados uns nos outros.

Se o sinónimo do tique ou peculiaridade fossem correntes de pensamento, dir-se-ia estarmos na presença de uma central eléctrica. Mas a sua luz é fraca e pouca. Ninguém se aproxima. Menos ainda os que ficam de volta.

A barba de dois dias, os óculos de aro metálico dourado gasto e pálido, as lentes de tamanho exagerado... O relógio digital com bracelete de pano castanho... O lábio inferior pendente... As maçãs do rosto avermelhadas... O passo lento e torto... E de novo os olhos, por trás dos óculos tortos com as lentes muito amarelecidas pelo sol e por produtos impróprios. É impossível qualquer luz passar por eles sem perder pureza ou força; As rugas nos cantos dos olhos estendem-se e afundam-se mais por isso, e diria eu que não terá mais de 40 anos.

Já o viram parar nas montras, como qualquer pessoa, mas em vez de varrer as prateleiras decoradas de acordo com a estação anual ou promoção ocasional, pousa a mão estendida entre a testa e o vidro para quebrar o reflexo da luz do dia, e ver mais fundo. Vê o que lhe interessa. Espreita quem lá está e o que faz. Olha lá ao fundo a empregada com alguma cliente ou uma criança que se afasta da avó e se põe a mexer numa fita sem ninguém mais ver que ele. Também não é raro vê-lo parado a olhar indiscretamente para duas mulheres à conversa no meio do passeio. Não dura muito. Só o tempo para elas perceberem “o espreita” e se porem logo em marcha. Eu, por mim, gosto de imaginar que ali está apenas um homem estranho, ou um ser humano de comportamentos estranhos, ou simplesmente sem jeito para disfarces para cobrir o seu interesse nas coisas simples e comuns dos homens no seu quotidiano. Mas não sei se conseguiria alguma vez defendê-lo, a ele e à teoria...

Chamam-lhe “o espreita” como podiam chamar-lhe “voyeur”, “curioso”, “cusco”, “chato” ou até mesmo “deficiente”, “retardado” e daí vir a entrar em campos mais injuriosos e flamejantes de irracionais e irreflectidas nomenclaturas caluniosas, animais, baixas e pouco dignas de chamar a qualquer ser humano. Podiam fazê-lo. E já o fizeram. Mas pouco me preocupa. Não sei se ele alguma vez as escuta. Talvez seja porque já terá percebido que a crueldade das legendas e títulos é essa mesma, a de reduzir qualquer coisa ou qualquer um a uma só característica, como se uma folha fosse demais para descrever ou a tinta estivesse racionalizada no uso. Ou talvez a razão maior seja o comodismo ou pura preguiça de ficar satisfeito pela metade.

Pouco importa.
A moral e a ética são palavras como as outras e erros de ortografia toda a gente os dá, e ninguém, aliás, nasce a saber escrever o que quer que seja.

“O espreita”, esse, lá continua, como sempre, a deitar os olhos a tudo, a alguém em particular, a alguma coisa específica, a vaguear, quem sabe, sem ter consciência.

Eu espreito-o a ele, aqui mesmo, hoje a viajar ao lado:
-Que vamos espreitar agora, amigo?

(escrito em 2002.04.28)

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