Tuesday, August 23, 2005

Chamam o Tempo

Não corre. Viaja. Não pára. Fica. E passa. A mão. Mostra. Leva. Oferece. Quem o viu. Quem o vê. Diz tudo. Tudo. Apaga. Muda. Transforma. E tu? Leva-lo? Contigo. Connosco. Viste. Amargo. Árduo. Aceso. Vilão. Amigo. Um livro. Sem papel. Sem palavras. Sem código. Sem signo. Uma rua. Sem sinal. Apenas isso. Rua. Sem marco. Sem traço. Um espaço. Um deserto. Aberto. Sem braço. Sem pega. Rua aberta. Sem prédios. Nem um botão. Nada. Só rua. O tempo. Uma rua sem vista. Passa. Passa. Passa. Deixa passar. Tudo passa. A pé. Devagar. Devagarinho. Como o sofrimento. Talvez. Talvez por isso. Talvez? Talvez por isso o magoem. Porque magoa. Porque não muda. Frio. Mudo. Surdo. Cego. O tempo. O teu. De todos. Sem âncora. Sempre assim. Por aí. Criança. Perdido. Como o vento. Mãos dadas. Sem paragem. Onde o encontras? No relógio. Não vale. Mentira. Não vale. Um conto. É só isso. Simulacro. Mentirinha. Faz de conta. O verdadeiro. Esse. O tempo cru. Não se conta.

O tempo não se conta.

Chamam-lhe tempo. Ao tempo. Ao verdadeiro. Que não se dá conta. Que se espera que passe. Que se quer que não passe. Que se abomina quando. Que se aguarda. Parado. Se perde. Esguio. Delgado. Sem ponteiros. Sem marcas no solo. Sem bitolas. Sem sinos. Só manifestações. É ele. Aí sim. É ele. O tempo. Manifesto. Discreto. A mostrar-se. Nas rugas. Fotografias. Nas coisas perdidas. Nos estragos. Isto funcionava... Era assim... Quando mexia, era...

Se a caverna se fecha. Apaga. Se tuo lá dentro. Te fechas. Se o mundo morre. Se tudo escreve vou-me. Embora. Para sempre. Não adianta. O tempo fica. Não pára. Mas deambula. Passa. mostra. Leva. Só traz para isso. Levar. Tudo morreu? Tu não? O tempo não morre. Abstracto. E directo. A contar-te. Tum. Tum. Espaço. Tum. Tum. Espaço. Tum. Tum. Bate mais fraco. O coração. É ele. Aqui tão perto. Ao ouvido. A dizer-te. Estou aqui. Tão perto. Não te deixei. Nunca deixo. Mesmo sem teres a luz. Sem teres mais que isto. Um buraco. Eu não deixo. Fico. Parto. Mas volto. Estou aqui. Como o outro. Sempre. O mais forte. Até depois de perderes o sangue. Os ossos. Eu aqui. Sempre.

Por isso lhe chamam tempo. O mestre. Salgado. Distante. Forte. Um Deus maior. Quem vê? Quem sabe? O que é? Sem palavras? Sem palavras. Ninguém sabe. Só vendo. Pelo menos assim.
Chamam-lhe tempo. Para chamar. Para saber. Ter a certeza. Murmurar. Para dentro. Ou num grito. Tempo. E nesse instante sabê-lo. Está aqui. Mas está. Sempre. Basta olhá-lo. Não vês? Tão estranho... Ele está aqui. Aqui mesmo. Não vês? Como fazes com os outros? O Tempo está cá há mais tempo. Não vês?

Chama-o.

Tempo.

Ele vem.

Vem logo. Num ápice. Um instante. Vem sempre. Quando. A quem. Onde. Sem porquê. Vem. Só isso. Aparece. Criança. Aos pulos. Ou como lençol ao vento. Andam juntos, não é?
Andam.

Acho que andam.

Quem me disse. Não sei. Deve ter visto. Por aí. Na rua. Sem pegas nem braços nem traves nem marcos nem sinais. Sem poder agarrá-lo. Senão com olhos. Com os olhos. Do pensamento.
Tempo.
Ah, estás aí...
Obrigado.
Tempo.
Ah, estás aí...

Chamam-lhe Tempo. Chamam-no. Por vezes muitas. Outras. Nem tanto. Tempo. Tempo. Tempo. Estás aí. Mas se o chamam. Será talvez. Talvez mais. Não para sabê-lo. Mas saber-se. Saberem. Estou aqui. Tinha-me esquecido. Talvez... talvez por isso...

Tempo.

Ah, estou aqui.

Obrigado.



(escrito em 204.09.24)

Chamavam-lhe “Santos Carlos”

Chamavam-lhe... perdão, ele insistia em que o chamassem e tratassem e nomeassem pelo apelido Carlos e nome Santos.
-Santos Carlos!

É lógico que o inverso estava patenteado no passaporte e carta de condução, bem como na fotocópia do B.I., que o original onde é que já ia ninguém sabia...
Contudo, e ainda que fosse de louvar a sua ideia de se chamar e ser chamado como se uma ficha desportiva se tratasse, "Santos, Carlos", com a decorrente ironia da inversão originar um plural de fé, a verdade é que ele se ria tanto de cada vez que se apresentava pela primeira vez a uma qualquer nova pessoa que, por isso, logo lhe retirava qualquer hipótese de sucesso pela iniciativa, originando imediatamente no receptor da mensagem os graus de 'grande' e 'enorme', o que até nem seria mau de todo, se não estivessem a preceder as categorias de ‘louco’ e 'anormal'.

Santos Carlos, contudo, ignorava a generalidade de todas estas coisas, e logo a seguir à apresentação do seu nome invertido completava:
-Santos Carlos, ex-ascensorista.

Depois, variava, ora colocando o términos do "tcham" que achava impactar nas pessoas com um solene "um prazer" ou um também não menos usual “às suas ordens”.
Daí, várias situações se podiam originar.
Uma das mais frequentes era Santos Carlos debandar em procura de outra alma, mais conhecida e já habituada aos seus devaneios e histórias, e principiar por chatear com a repetição de lenga-lengas sobre marquesas que conhecera no Hotel Tivoli ou no Ritz, que fora ele quem dera o conselho final ao presidente em visita ( e do qual, curiosamente, não sabia o nome nem descrição sequer aproximada) do Four Seasons para se consumar a fusão entre esses dois gigantes, ainda que o topo do Sheraton vira já um homicídio ocultado ou que no quarto do 6º piso (número a não revelar por obrigação e princípio de profissional do meio) se deixara estar 8 horas seguidas em sucessivas partidas de Póker com um grupo de empresários alemães.

Outra situação surgia quando, sabe-se lá porquê, algum dos recentemente apresentados se mostrava impressionado com a personalidade de Carlos Santos. Aí ele não se calava mais. Mediano de estatura esticava-se e parecia ganhar mais 5 centímetros, a barba apenas de dois dias era cofiada à mesma, num gesto sábio e de quem reflecte imenso na vida, os cabelos lisos muito bem penteados para um dos lados alisados ocasionalmente, e a pose de um sábio a fazer semicerrar os olhos nos momentos mais secretos e a iluminá-los durante uma anedota, que, claro, era contada no original alemão/francês/inglês/italiano e com concomitante tradução frase-a-frase para o português, resultando numa galhofa final dele e em simples sorriso delicado ou simpático do ouvinte.

A minha história preferida era nenhuma história em particular, mas as situações gerais que ele contava, sem poder definir alguém em particular, sem poder atirar uma data ao ar ou sequer nomear um dos hotéis em definido; eram as histórias da rotina de ascensorista, essas, as que eu, por mim, ouvia até acabar o copo e estar a cair de sono, tendo entretanto já rido e meditado profundamente. Porque não é de descurar a enorme capacidade deste Santos Carlos para contar histórias. Sobretudo nos dias mais chuvosos, em que ficava fechado por mais de duas ou três horas num café e ninguém tinha grande pachorra ou sequer mesmo interesse em o cumprimentar, como sequer ouvir, aí tornava-se uma presença profunda, de voz cava e rouca e olhar perdido num horizonte de balcões e copos e chávenas, nas ruas apinhadas lá fora, no cimento dos passeios, num pormenor de um casaco de alguma pessoa. Aí, deixava as histórias de ascensorista, sacava de um cigarro já muito melindrado pelas vezes sem conta em que entrara e saíra do maço, e punha-o na boca ao dependuro. Depois começava a falar, quem sabe se para o escutarem ou simplesmente para si mesmo. Ia e vinha, de tom e no tempo, ora a perceber-se claramente o dia em que começara a carregar nos botões, por acaso numa velha pensão de 6 andares numa rua por trás da Grande Praça, ora a perder-se a voz e a coerência quando já estava na velha casa de madeira do pai e quando recordava a chinfrineira que fora quando da partida da irmã mais velha para o Canadá. “Ainda lá estaria, mas viva ou morta, que sabia?...” Eu não, certamente, nem mais ninguém no café, que entre o silêncio que a chuva sempre traz de oferta só abanava um pouco a cabeça, solenemente, soerguendo um pouco as sobrancelhas pela tragédia de algumas coisas que a todos acontecem nas suas vidas, e depois logo esquecendo o episódio da vida de um velho ascensorista, para, individualmente, um a um, ficarem todos a meditar nalguma coisa do seu passado.

Creio que, em parte, seria até por isso que muita boa gente já não aguentava ouvir muitas filosofias e velhas memórias de Santos, porque temiam vir a odiá-lo como recuperador de memórias e sofrimentos já há muito recalcados. E sobretudo os donos dos cafés queriam a todo o custo evitar isso, não só porque um café de mágoas era bom para vender bebidas mas não para sempre, só a partir das 2 da madrugada e para meia-dúzia de gatos pingados, mas sobretudo porque eles também tinham as suas histórias, e estar a trabalhar com um constante zumbido na orelha a balouçar e a despertar quezílias e problemas e desilusões, entre outras coisas...

Por vezes era eu quem o afastava, e, finalmente, lá começava ele a contar das histórias gerais, das situações caricatas que sempre aconteciam nos elevadores de “qualquer hotel do país, do mundo e, quiçá, se por esse universo fora houverem estalagens, motéis ou hotéis, de luxo ou mesmo de uma estrela apenas, até aí também muitas destas coisas!”. E lá começava: silêncios comprometedores entre duas ou mais pessoas, confissões de pecados, declarações de amor (e, até, um pedido de casamento), politiquices sujas ditas a meia-voz, reencontros de gente desaparecida, gente perdida à procura do hall com “aquele quadro assim e assado que era o único ponto de referência que tinha como do seu andar certo” e muitas outras.

No fim do dia, ou melhor será dizer pelo princípio da madrugada, Santos Carlos, ex-ascensorista, saía do café mais abatido que um herói sem dever cumprido, e dali todos sabiam que só tinha dois destinos: umas duas ou três casas de mulheres que do seu tempo de hotel sempre recomendava a alguns turistas, e de onde retirava depois uma comissãozita, para além de algumas “carícias” e calor humano de graça; ou então a sua velha casa, um apartamento bem no centro desabitado da cidade, perto de todos os maiores hotéis, onde, um dia ou outro, lá voltava, para dar umas dicas aos rapazes das malas e falar com os novos e desconhecidos tal como com os velhos conhecidos recepcionistas, dizer que agora quase nenhum hotel tinha um tipo decente aos comandos do elevador ou sequer alguém presente, havendo até a ideia já avançada do comando ser feito via uma central ou, ainda pior, por computador! – modernices... aliás, uma completa vergonha, deixarem os clientes abandonados ao seu destino!

Quando as manhãs já acenavam os raios, Santos saía então pela rua e entrava desgraçadamente em casa, exausto.
Mulher?
Filhos?
Família de qualquer espécie?
Um silêncio apenas de todos os que o conhecem.

O pai, bruto, vai-se escutando aqui e ali nalgum delírio de copos. Da irmã só se sabe que foi e não veio do Canadá. E do resto uma mudez parece habitar este homem de andar cansado e que teve uma vida como nenhum outro ser humano, tão para cima como para baixo, ou como diria o próprio em tom sarcástico, “como os meus elevadores, cheio de altos e baixos”. Quem sabe, dizem uns, não terá sido tal inconstância que o terá conduzido à perdição!? Deveria o Estado avaliar a profissão e assistir com um subsídio especial?... Deveria jamais ser permitido trabalhar em tal habitáculo por mais de 5 anos?... ... ...

Do que se conhece ao certo de Santos Carlos vem de há apenas 2 anos, altura em que começou a aparecer pelos mesmos locais que eu e outros frequentamos, sem que alguém ainda conheça ou tenha perspectivas de vir a descobrir uma alma que nos possa elucidar e fazer a sua ligação ao passado que só ele conta.

Inevitavelmente, um dia haverá de carregar pela última vez no botão para fechar a porta, pressionar a ida sem volta para o último andar e premir a saída quem sabe angelical, quem sabe de penitência... Como ele lembra, “até a roupa suja se lava nas caves abaixo da terra”.
Inevitavelmente, um dia haverá de chegar que o café deixará de o ter como personagem assídua e personalidade ora em cima das mesas com um copo de cerveja ora debaixo das saias das empregadas a limpar as lágrimas e a implorar por uma noite dormida com duas mamas leitosas a servir de almofada.

Inevitavelmente, um dia a memória de todos apagar-se-á dele e ficará apenas uma impressão vaga, porque na nossa vida há coisas que, nos últimos dias e suspiros, iremos recordar por mais importantes que esta, dilemas e tragédias, felicidades e alegrias simples, viagens e conquistas, desilusões e melancolias.

E um dia, inevitavelmente, nada mais restará de Carlos Santos, o ex-ascensorista que vagueava pelas ruas e cafés na esperança, digo eu, de vir a encontrar um que ficasse no 3º andar e tivesse à porta um anúncio de “ascensorista precisa-se”.

Hoje, contudo, tem uma velha francesa carregada de jóias falsas, correntes de um amarelo vivo e quase chocante, lenço de seda de cores berrantes em grande contraste com as cores da camisola e da saia comprida, brincos pesados e grossos e anéis com pedras baças, tem esta visita que o diz conhecer de há alguns anos atrás, quando houvera trabalhado algures num recém-inaugurado hotel em nenhures, que logo fechara e a deixara na rua, como a todos... e dali já mais ninguém escutou, por que era já coisa pessoal e mútua dos dois e, diga-se em boa verdade, a dada altura até terrivelmente aborrecida.

Na televisão, contudo, o jogo animava-se com a expulsão do defesa, e a filha do Vasco dono do café acabava de inventar nova profissão urbana: operadora de telecomando; e já primava pela técnica rápida e inteligência, baixando o som durante o jogo para que não se fizesse barulho com as vozes três tons acima, levantando quando havia uma jogada discutível e baixando quando era imperioso que se deixassem as pessoas discutir as coisas, terminando em apoteose com o volume a mais de meio logo após o êxtase de um golo, onde todos berravam de qualquer maneira e se cumprimentavam entre da mesma equipa.
...

Inevitavelmente, um dia...


(escrito em 2001.12.16)

Tuesday, August 16, 2005

Chamam-lhe Roberto

Roberto. E Roberto vem. Traz um banco de madeira. E. Uma almofada. Encapada. A lona preta. E. Um lenço branco. A assoar de vez. Em quando. Em vez. A sacudir trapos. Varrer o chão. Com o sapato. A sola. A sacudir a garganta. A traqueia. O escarro. Abrir a lata. A remexer na pasta. Um dedo de conversa. Basta uma. Uma pergunta. Diga lá... Já está. Roberto não diz. Nada. Só esfrega e puxa. O lustro. A conversa. A paciência. Um lenço. Na testa. Sobre o suor. E escuta. Escuta. Nem que sejam apenas as folhas. Amarelas. Viradas. Jornal de ontem. Não reparou? Desculpe. Não pude ainda... Foi um outro... Esqueceram... São dois euros. A bota. Não é muito. Melhor não encontra. Deixe estar. Eu limpo. Não gosta? Aqui não entra. Nem uma gota. Vá por mim. Roberto. Toda a gente conhece. O Roberto. Graxista não. Engraxador. Até mulheres. Muitas. Doutoras. Sabe quanto custa hoje um par? Claro que sabe... Que pergunta. Eu não sei. Não compro. Dão-mos. Estes pediam. Eram de um deles. Um pedinte. Olhe. Vê? Digo-lhe isto. De um pedinte. Fazia mais que você. Talvez não. Você não. Mas que muita gente. Fazia. Mais. Digo-lhe mais. De uma vez deu-me dois. Dois pares. Dois para mim. Para pagar. Trouxe-me uma saca com mais. Para ele. Quase novos. Para estragar. Veja! Eu! Roberto da escova! A estragar sapatos. Mas faz-se. Tudo. Faz-se. É uma arte. Não parece. Desculpe falar assim tanto. É hoje. Não sei que deu. Diga. Diga. Foi um saco. É verdade. Para estragar. Deu-se um jeito. Faz-se tudo. Ficaram como queria. Velhos. Por dentro não. Por fora. Nada. Só remendos. Bonitos por dentro.

É... É isso. Todos os dias. Vai-se... Sabe que... Pois... é isso, é isso... Tem razão. Não joga nada. Esse também. Não manda. Ora no tempo!... Digo-lhe isto: ...não acha?Roberto!

Sente-se.
Roberto. Escova na mão. Na mesma rua. A engraxar vontades. Polir desejos. Vaidades. Medos. O lustro nos egos. Notícias. Más-línguas. Boas novas. Mentiras. Tretas. A graxa tapa. Tudo.
Ora isso agora...
Faça então três euros. Tiro-lhe meio.

Roberto é assim. Mais um. Tipo. Da rua. Sentado. Agarrado. Aos trapos. À escova. Aos pés. Curvado. És assim. No passeio. Sob o toldo. A fiar o pêlo. Os beiços. Puídos. Sobrepintados. As unhas. Pretas. E as gretas. Escondidas. Sob camadas. Várias camadas. Muitas camadas. Sobre camadas.

Um tacto rude. Áspero.
O pé esmagado. Os dedos. Num vai. Num vem. E vai. De novo. E vem...
Digo-lhe isto: não é chato.
Para fazer bem. Tem de ser assim. Fazer sempre. Todos os dias. Sempre. Fazer o mesmo. Assim é que fica bom. Vê? Perfeito. É isto. Todos os dias. Olhe!
Deixe-me usar castanho. Confia?

Digo-lhe isto: ou mudam. Ou mudamo-nos. Ou mudam-nos. Foi tal qual. Um doutor. No outro dia. Fiquei a pensar. Faz sentido. Pense. Vai ver que. Pense.

Digo-lhe isto: quando morrer, cobrem-me. De graxa. É o meu fato. Lá em baixo não há frio.
Digo-lhe: quando acabar a graxa. Acabo. E que acabe. Vai ver. Todos. Toda a gente. A cuspir em si. Não em si. Em você. Em si. Em si mesmo. Todos. A cuspir-se. Passar lustro na calça. Nas meias. Vou gostar. Vai ver. Para ser diferente.

Digo-lhe: não é a toa que me chamam Roberto.
Olhe. Quando quiser. Estou por aqui. A engraxar sapatos. É só o que faço. Não era bom? Assim? Todos? A fazermos só isso? Uma coisa?
Digo-lhe: era um outro mundo.
Quando quiser. Passe aqui. Pergunte ao Roberto. É assim que todos. Roberto. Me chamam. Roberto.


(escrito em 2004.09.29)

Chamam-lhe “fotógrafo”

cigarrilha na boca
máquina ao peito
um jeito curvado
este e aquele e ainda outro meio feito
mais soberbo
ou mais esquecido
ou até sem jeito
enquanto nas unhas
amareladas
e roídas
um novo concerto
de cliques e tiques
e retiques
e zooms
e esperas
e conversas com quem por ali vagueia na mesma mala de viagens feita de histórias alheias
a sair em fotografias a preto e branco das varinas
dos comícios
dos conflitos
dos desalojados
dos políticos
e dos magros, podres e outros afins assuntos
enquanto
ao fim-de-semana
ou nos outros dias fixos
as cores dos casamentos
e os bailes dos filhos
e os copos dos netos
e dos primos
e dos príncipes
e dos amigos
e de outros parecidos
a dar o rosto ao manifesto
e a lucrar com isso
enquanto o tipo que tem o telefone sempre ligado lá vai de novo uns quantos quilómetros
para uma foto-passe
para uma capa
um catálogo
um choro convulso a encher três páginas
um beijo apanhado ao longe com entrada directa no pontilhismo
e arte na fuga
de uns quantos
ou de um apenas
ou de nada
que não seja rotina
a limpar lentes sujas de pó e cuspo
a vestir roupas largas e a usar mochilas
a calçar prendas
a esfregar a barba
a explicar as histórias verdadeiras a meio com as fantasias
a perder noites
a verter copos depois
a provar jantares
acepipes
boatos
vinhos brancos
e a meter tudo no saco com prazo curto,
a esperar
mas pouco
sob o sumo dos acontecimentos
sem cessar
do mesmo fruto
para os milhares que aí se vão precavendo das viroses do Inverno
das depressões da Primavera
dos sonhos de Verão
das surpresas de Outono
sobre grelhas feitas à pressa
e com novos rostos, novos nomes, novas formas
que já se sabe
entre quem sabe
por onde andaram a fazer subir
as suas ideias
vertigens
prazeres
poderes
e outras coisas que lá vão trazendo dividendos
por entre negócio
e ócio
e prazer,
até
um dia simples
o telefone tocar para um pedido singular
de presença obrigatória
desta vez tão diferente
a pedir-se na voz trémula para repetir
para confirmar
depois do urro interno
do rubor na face
do orgulho de humano solitário após mil maratonas sob chuva e sal e sol no deserto,
do tempo de espera recompensado
agora
finalmente
não para fotografar
mas ser fotografado
no altar
pelos colegas
todos eles
enquanto se lá chega pelo próprio pé e corpo coberto de fato
um sorriso contido
nervoso
as mãos a soerguerem apenas uns centímetros
a distinção
não de aço coberto de ouro
mas de plástico
ora preto
ora cinzento
com retoques de design moderno
e preço alto
ao alto
apontada ao centro
sempre
antes e agora
e depois
sempre
sempre
sempre...
...entre uma cigarrilha na boca
um dedo de conversa
um dia inteiro fechado num canto
numa árvore
num esgoto
num carro
a mijar em garrafas de plástico
para depois
amanhã
às vezes nem isso
ir cobrir passadeiras vermelhas
visitar salas de hotel
morar por aí
conhecer tudo e todos
e no fim
na carteira
no álbum
na memória
apenas uma imagem própria feita de contornos difusos e desmaiadas cores
...como é que eu era mesmo?
ah, sim,
apenas isso,
documentalista
retratista
artista
mágico
mentiroso
verdadeiro
intruso
fiel
confidente
simpático
maldito
e mais isto
e mais aquilo
mas no fundo
tão simplesmente
fotógrafo
homem de passeios
olhares atentos
enquadramentos
jogo rápido
amigos poucos
mil cuidados
e muito sono
só isso
fotógrafo
quem tu vês por trás de algo que te olha
quem tu nunca vês
quem tu sempre procuras ver por inteiro
mas não consegues
como a estrela que aguardas retire os óculos escuros
quem tu só vês pelo que ele vê
o fotógrafo
assim
quase sempre
para ti
para quase todos
talvez até para ele mesmo
a fazer ver como ele viu,
ele que viu o mundo tão de longe e tão de perto
fotógrafo disto e daquilo
um nome na praça
nos jornais e revistas
nas galerias
nos livros pesados
nas enciclopédias
em letras muito pequeninas por baixo
em memórias que se vão desfazendo
até ficar
apenas
no papel
o seu melhor trabalho
nada mais
nada
só isso
apenas isso
ou
quem sabe
com sorte
esse e mais um outro
dois ou três para os mais afortunados
mas no tempo
é isso
essa fotografia
que permanece e que fica
vai ficando
uma palavra muda que se repete e expande cá dentro,
e talvez seja
então
por essa razão
que toda a vida sustém a rotina do muito,
por esse singular centésimo de segundo,
senão para todos
pelo menos para alguns...

e a verdade
então
talvez deambule por aí
nessa frase
de quem disse que um fotógrafo é aquele que apenas sabe procurar a vida inteira fazer
um livro só com uma palavra.


(escrito em 2004.09.10)

Chamam-lhe “Maria, a Porta-Chaves"

Chamam-lhe assim. Porta-chaves.
Pela mão. Um dia. Um cão. Hoje um simples porta-chaves. Frio. Polido. Entre os dedos. Grossos. Mais grossos do que eram. Na mão cheia. Não há pouco tempo.

Há quem diga. Por aí. Que se chamava Maria. Maria. Um nome ausente. Já de si ausente. Neutro. Quase vazio. Maria era assim. Gente. Como tanta gente. Só mais uma. A sair às horas. Parecidas. Matinais. Tardias. Horas tolas. Importantes. Macias. Duras. Obrigatórias horas. Minutos a disfarçarem o tempo igual.

Passeava. Pelo parque. Um jardim. Verde. Escasso. Torto. De relva entornada aos dias. Passeava a passos corridos. A fugir de um cão. Russo. Russo de nome. Pêlo preto. Corpo agigantado. A fugir e a gritar. Russo! Russo! Russo! Via-se e ouvia-se. Também. A rir. Não raras vezes a rir. Russo pela trela. Solto na relva. Comprida. Assim à tarde. Às horas tardias. Do dia. Do final de dia. Claro, o final de dia... O sol a baixar. No passeio uma carripana. Branca. Partida. A estacionar. Um toque atrás. Outro à frente. Uma multidão de putos. No passeio. Mochilas às costas. O etecetera. Mais isto e aquilo. Passageiro. Tudo. Tudo passageiro. Como tudo. E ali no meio. No parque. Maria. A porta-chaves. Não então. Mas agora. Nessa altura apenas Maria. Maria & Russo. Entre corridas. Apanhada. Maria vencida. Por Russo. Por outros? Russo na peugada. Maria corrida. O cão grande e preto de pêlo curto. A relva. Longa. Comprida. Farta. Verde. Muito verde. E Maria. Sobre a relva. Russo vem cá. Russo corre. E Russo corria. Aos olhos de Maria. E outros.

Maria apertava. A trela. As ideias. Algumas músicas. Sonhos. O porta-chaves. No bolso. Nas mãos cheias. Um sorriso. Solto. Russo roçava. Nas pernas. Refugia. Maria olhava. Perdia. Nas horas. No tempo. Pensamentos. Mais pensamentos. De uma casa? Um carro? Amigos. Jantares. Um romance. Fotografias. Um beijo. Um amante. Um homem? Um homem. O homem. E ali à volta. Tantos. Aos volantes. A pé. De fato. Com as crianças. De pasta. Sacos das compras. Bigode. Cabeça rapada. Novos. Jovens. Adolescentes. Bancários. Velhos. Reformados. Negociantes. Perdidos. Emigrantes. Desconhecidos.

E Russo corre.
Maria corre.
Um tipo. Um dia. Quem sabe.
Russo! Vem cá!
E ali perto. Na relva. Um tipo. A olhar. Não é a primeira vez. Houve outras.
Maria olha. Faz que não. Vê. Atira e corre. Com Russo. À frente. Atrás. Passa as mãos. Pelo pêlo. Pela baba. Olhos. Nos olhos. De quem vê. De quem passa. Perto. Um homem casado? Solteiro. Quem sabe... Hoje. Um dia qualquer. Um dia. Hoje? Um dia qualquer. Um dia. Um dia. Quando vier. Um dia. De cada vez. Podia ser este. Este dia. Este homem. Ou outro. Outro qualquer. Como o que se vê. A cada hora. Nos sonhos. Nas ideias. De revista. De memória. De conversa. De cinema. De letras. Músicas. Poemas. Rascunhos nas portas. Blocos de notas. Atrás de uma lista de supermercado...

Desejos.

Maria olha. Mais uma vez. Faz que. Mas olha. Outra vez. Russo! E olha. E o tipo olha. Faz que. Mas olha. Corre. Atrás. A passo. E pára. Assoa. Limpa. Tosse. Quem sabe. Sonha? Também? Maria corre. Atrás. Russo! Russo não pára. Corre. Corre. Corre.

Boa-tarde.
Bom-dia.
Olá.
Está sempre aqui...
Palavras. Muitas. Parecem sempre. Muitas. Quem as recorda? A todas? As primeiras? As primeiras mesmo. Aquelas. Essas. A rasgar. Tesouras. Bombas. Mísseis. Atacantes. Defensivas. Assustadas. Medrosas. Brutais. Toma. Aqui vai. Esta. Outra. Aquela. Agora esta... Sem saber. Sem dar por elas.
Os olhos ficam.
Olhos. Castanhos. Ambos. Cabelos. Pele. Sardas. Lábios. Grossos. Finos.
Mas os olhos. Esses. Ficam.

Quem fala? Quem sabe... Ouve-se. Mas os olhos. Esses. É que falam. Nada importam as bocas. E ele fala. Que diz? Ouviste bem, Maria? Um sorriso. Um convite. O sol põe-se. Vem a noite. Tens um convite. Um jantar. Russo! Vem cá! Sorrisos. Tremores. Por dentro. Por fora. Nas pernas. Joelhos. Dentes brancos. Nervosos. A sorrir. Uma paz. Convulsa. Festiva. Repressão à força. Um aceno. Cabelo atrás da orelha. Troca de números. Russo! Vem aqui!

E aqui vem. Mais um dia. Outro. Mais. Outro. E outro. Ainda. Outro.
Um jantar.
Cinema.
Esplanadas.
Um café.
Uma fotografia.
Uma história.
Outra.
Outra ainda.
O passar do tempo.
O silêncio.
De volta.
Um dia.
Outro.
Teatro.
Farsa.
Um passeio.
De carro. Um belo carro. Comprido. De cor forte. Vermelho. A desviar. Por entre. Rápido. Esquivo. Fugaz. Brilhante. Viçoso.
E o mar...

Ambos. Parados. Sentados. No carro. Vermelho. Os dias atrás. A memória cheia. Conversas. Histórias. Partilha. Uma mão. Pele. Na pele. Com pele. Macia. Lisa. Um aperto. Dentro. Bem dentro. Bem cá dentro. No centro. Quente. Pulsante. Mais quente. E os olhos. Nos olhos. O mar ao longe. Os olhos perto. Saliva extinta. O chão. Fugidio. Num beijo. Seco. Curto. Lábios colados. E os rostos. Inertes. A recuperar. Tontos. Um sorriso. A felicidade. Um instante. Acreditas? Que é para sempre? É para sempre. É sempre. É sempre para sempre. Sempre. Como nunca. Ambos para sempre.

A relva seca. O sol. Alto. Bruto. Longo. Distante. Não foge. Fica. Forte. A cuspir. Raios. Coriscos. O campo evade-se. De gente. De cães. De pássaros. Só lixo. Folhas. Papéis por assinar. Até que o vento. E a sombra. Longos. A tarde. E Russo. E Maria. E o tipo. Na corrida. Curta. O abraço. Vai Russo! Vai!

Jantar. Cinema. Esplanadas. Café. Fotografias. Histórias. O passar do tempo. Silêncio. Um dia. Outro. Teatro. Leitura. Jardins. Hotéis. Pousada. Praia. A cama. A teia. As ligas. As rendas. Fantasias. Prazeres. Farsa. Passeios. Gelados. Restaurantes. Tascas. Copos. Noitadas. Viagens. De carro. Um belo carro. Vermelho. A desviar por entre. E mais horas. E dias. Telefone. Rápido. Medo? Uma espera. Outra. Outra ainda. Outra?

A tarde chega. A sombra parte. A relva. Escura. A noite. Negra.
Russo. Vem.
Em casa. A campainha. O elevador. A porta aberta. Uma história. E mais outra. Outra? Outra... Outra vez? Não. Só outra. A lágrima.
Russo, sai...

A sala. As velas. A colcha. Revistas. Mesa torta. TV ausente. Rosto. Rostos. Nos rostos. Rubros. Húmidos. Desculpas. Justificações. E um pedido. Um desejo? Vem viver comigo. Só assim. Tem de ser. Assim. Só assim. Assim consigo. Só assim...
Russo, rua.

E Russo vai. Maria também. À tarde. Seguinte. Pensativa. Quente. Lágrima fixa. Que fazer? Um homem. O homem. Uma casa nova. Os dois. Só ela. E ele. E a casa. Com quarto. Cama larga. Uma sala. A dois. Uma cozinha. Para os dois. Dois pratos. Dois copos. Duas cadeiras puxadas. Duas almofadas. Duas toalhas. Duas escovas. Duas marcas. A mesma ideia. O mesmo problema. Russo! Russo! Russo! Vai! Corre! Vai! E Russo vai. Corre. Passeia. Fareja. Isto e aquilo. Quase tudo. Quase. Quase tudo. Corre de volta. A trela. Presa. De novo. Ambos de volta.

Maria liga. Telefona. Espera. Aguarda. Angustia. De novo. Tenta. Outra. Outra vez. Pousa. Olha. A casa. As contas. A renda. A vida. O chão. Tijoleira. Paredes claras. Sujas. Russo. Na sala. Ali. Perto. À espera. De nada. E Maria tenta. De novo. Abafa o estômago. A voz responde. Maria fala. Sem forças. Acede. Que sim. Que sim. Os dois. Só os dois. Eu e tu. Nós. Os dois. O Russo... Sai. Hei-de ver. Vou ver. Tenho de ver. Ouve. Escuta. Promete. Enleva. Macia. Mais isto. Aquilo. Um dia. Verás. Um dia. Verás. Todos os dias. Todos. Os dois. Juntos. Bom. Será bom. Muito bom. Tremendamente bom. Como todos. Sim. Como todos. Como os outros. Que passam. Cruzam. Na rua. No parque. Ao volante. A pé. De fato. Com as crianças. De pasta. Sacos das compras. Bigode. Cabeça rapada. Novos. Jovens. Adolescentes. Bancários. Velhos. Reformados. Negociantes. Perdidos. Emigrantes. Desconhecidos. Promessas. Eventos. Quem sabe...

Um dia.
Outro.
Dia.
Tarde.
Noite.
Escura. Lua ausente. Terra fria. E Russo na carpete. De cores. Roídas. Gastas. Velhas. Fios fracos. Farrapos. Uma bola. Ao pé. Massacrada. Buracos. Caretas. Uma máscara. É uma máscara. Uma personagem. Uma visita. Uma gargalhada. Uma tragédia. Três olhos? Uma besta? Uma escultura. Rupestre. Bolestre. Canina. Faminta. Saliva em cascata. E Maria olha. Sorridente. Afaga. Balbucia. Olha. Nos olhos. Olhos nos olhos. Sobrancelhas erguidas. Pesar tardio. E talvez não. Quem sabe... Agora? Não. Não pode. Já não se pode. Não dá. Amanhã vê-se. Amanhã vejo. Onde ficas. Com quem ficas. Tenho de ver. Amanhã. De amanhã não passa. Só eu. Passo. Passo-te. Eu... Não dá. Não posso. Não posso. Não consigo. Não posso. Nunca. Sempre. O mesmo. Não quero.

Um ring.
Dois.
A voz. A mesma. Do corpo. Daquele corpo. Daquele carro. Fugidio. Esquivo. Forte. Vermelho. Comprido. Um soluço. Um pedido. Os três. Só os três. Juntos. Silêncio. Insisto. Os três. Silêncio. Insisto de novo. E tu? Que dizes. Silêncio. Suspiro. Não dá. Não pode ser. A escolha é tua. Não dá...

O dia nasce. A tarde cresce. A relva finda. A máquina limpa. Outra que vem e aspira. A carrinha parte. A luz fraca lambe. A erva. A relva. A terra. Um malmequer. Uma caneca partida. Descoberta. E um poio. E uma prece. Numa bola. De papel. Quadriculado. Aprisionada. Riscada. De lado. Junto ao furo. Perdeu-se? Arrependeu-se? Mais um soluço. Russo! Corre! Vai lá! Corre! Corre, Russo! Deixa... A bola salta. A máscara. Oval. Massacrada. De novo. Irrequieta. Viril. Possante. Vibrante. Sem relva longa. Sem travessas. Sem barreiras. A brilhar. Na pouca luz. A descer. Veloz. E Russo atrás. Maria ao longe. Distante. Desatenta. Russo a descer. Maria a ver. Agora. Só agora. Agora. Só. A bola. Alta. A embater. Rebater. Ultrapassar. Por entre. Por cima. Por baixo. E Russo. A correr. Mais perto. Mais alto. Por entre. Por cima. Por baixo. A estrada perto. Já perto. Maria ao longe. Russo mais perto. A bola tosca. A parar. Devagar. Oval. Avanço curto. Avanço maior. Pelo passeio. Cimento. Torto. Aberto e tapado. Vezes sem conta. Irregular. Mais um centímetro. Russo mais perto. A bola a parar. Maria. De longe. A correr. Atrás. De Russo. Pêlo preto. Curto. Patas fortes. A parar. Focinho comprido. Boca aberta. Caninos brilhantes. Saliva a escorrer. Bola à frente. A descer. A guia. O passeio. Uma sarjeta. Por cima. O alcatrão. A terra encostada. Um metro só. Apenas isso. Um metro. E Russo atrás. Da bola. A morder. A mordê-la. Maria ao longe. A gritar. Russo aqui! Russo aqui! Volta! E nisto um carro. Veloz. Vermelho. Sem bem se ver. A bater. De frente. Em Russo. A bola a rolar. De novo. Maria. Ao longe. Em silêncio.


A estrada negra. Manchada. De negro. De óleo. De sangue. Vermelho. Uma tontura. Um grito. Um susto. Um desalento. Um tanque cheio. Um dilúvio seco. Nada a sair. Sem sair. Sem conseguir sair. As pernas. Fracas. Passo a passo. Sem crer. Tudo assim. Sem crer. Sempre. Como nunca.
A trela na mão.
As chaves na outra.
A noite a cair baixinho sem um só pio que diga alguma coisa ou um conforto de um corpo forte a segurar outro corpo entre as chamas pretas de uma perda igual a outras e tantas outras todos os dias iguais a outros e tantos outros...

Um dia.

Outro.

Mais um. Mais um dia. Mais um. Mais um dia. Mais um. Mais um dia. Um dia. Um dia. Um dia. Um dia. Um dia. O mesmo. O mesmo dia. Dia. Dia. Dia. O mesmo dia. Mais um. Mais um. Mais um. Mais u...

Sol. Tarde. Chuva. Noite. Lua. Sossego. Janelas. Lâmpadas. Acesas. Gargalhadas. Por cima. No andar de cima. Do lado. Uma criança que chora. A noite lá fora. TV’s acesas. Camas rangidas. Um edredão de penas. Sem uma. Sem mais uma. Mais uma. Sem uma. Menos uma. Menos uma. Menos uma. Menos uma.

Quem é aquela?
Chamam-lhe Maria. A porta-chaves. Ia casar. Viver com outro. Ficou sozinha.

Quem é aquela?
Aquela ali?
Aquela. Na relva.
Chamam-lhe a porta-chaves. Trazia trela. Um cão. Até marido. Um dia não sei. Ficou sem nada. Vem para aqui. Assim. Só a pé. Sozinha. A mexer nas chaves. Entre os dedos. Grossos. Mais grossos do que eram. Na mão cheia.

Quem é aquela?
Quem é você?
Sou novo. Por aqui. Cheguei agora. Há dias.
Aquela já é velha. Chama-se Maria.
Maria?
Ou Porta-Chaves.
Porquê?
Morreu-lhe o cão. Com quem vivia.
Anda triste...
Pudera. Era o cão dela.
Como era?
Quem?
O cão. Dela.
Era grande. Um grande cão. Grande e preto.
E agora?
Agora o quê?
Com quem anda?
Não vê!? Anda sozinha. Sempre. Assim. Com aquelas chaves. Nas mãos. Mais nada.

Um passo à frente. Outro ainda. Na mão a trela. A mão firme. Masculina. Pêlos nas costas. Da mão. Larga. Mão que assina. Mão que escreve. Mão que pensa. Mão que chora. Ri. Amargura. Aguarda. Avança. Hesita. Risca. Rasga. Rompe. Ruge. Reza. Prega. Recomeça. Mas mais. Muito mais. Mais que isso. Crê. Puxa. Puxa para si. Kassy. Anda! Anda, Kassy. Vamos ali. Vamos.
A relva comprida. Os passos fofos. O som. Sem som. O passo. Sem eco. Só marca. E ele assim. Passo a passo. Mais um passo. Para Maria. A Porta-Chaves. Que teve. Isto. E aquilo. Um dia. E não teve nada. Ou quase. Teve. E não teve. Maria assim. Ou Menos. À espera. Quem sabe. E daí. Quem sabe...

Kassy, senta. Boa-tarde. Olá... Está sempre aqui?
E Maria sorri. Olha-o. Olha. Roda as chaves. No porta-chaves. Pára. Mexe o pé. Não responde. Diz. Nada. Mete as mãos. E as chaves. Nos bolsos. Parada. E fica. Ali. Ali fica. E ele insiste. Mas Maria. Assim. Como é. Agora. Diz. Nada.
Ele sorri. Acena. Cumprimenta. Despede-se. Anda, Kassy. Anda...

Ela chama-se Maria. Chamam-lhe a porta-chaves. Ia casar. Viver com outro. Ficou sozinha.
Ele vai-se embora.


(escrito em 2004.09.20)

Thursday, August 11, 2005

Chamavam-lhe “C.M."

Tive um amigo a quem chamávamos C.M.
Só a malta de Ermesinde o conhece.
Desde que saí de lá, nunca mais ouvi nada sobre o C.M. Chamávamos-lhe CM porque só tinha 2 cm. Mas por causa da situação minorca dele tínhamos alguns complexos em lhe alcunhar de centímetro. Então usámos as mesmas iniciais “cm” de centímetro e do jornal Correio da Manhã para o chamarmos de “CêEme”. Era mais subtil. Só para disfarçar. O CM não levava a mal e a nós simplificava-nos o trabalho.

Com o CM havia sempre episódios de bradar aos céus!
Uma vez andou desaparecido durante 1 semana. Os pais dele já estavam a passar-se dos carretos. Ainda chegaram a ir aos telejornais, mas ninguém acreditou neles e no facto verídico de terem um filho minorca com apenas 2 cm. Felizmente, lá acabaram por encontrar o CM. Estava enfiado no meio dos pitons da chuteira do Albino. Tínhamos ido jogar futebol uma semana atrás e no meio de um lance confuso o CM enrolou-se todo e o Albino acabou por pisá-lo. Também, diga-se de passagem, o CM não estava na equipa senão por misericórdia. Nós bem o avisámos. Mas que se pode dizer a um gajo que insiste que pode marcar golos de cabeça...

Certa vez chegou-se ao pé de nós com ares de suspiro:
-Arranjei uma namorada.

Pelos vistos a fulana era de um bairro de ali perto. Nenhum de nós, do grupo, a tinha visto mais gorda. Ou mais feia. Quando o CM mostrou a foto ninguém piou. Era óbvio que a gaja só se tinha metido com ele para dar nas vistas e andar nas bocas do mundo. Nenhum conselho ou advertência saiu da boca de uma só cara borbulhenta naquela hora. Isto de gajos enrolados com gajas é mesmo assim, cada um que se cuide e aprenda com os próprios erros. Porque quando um gajo anda apaixonado, anda apaixonado. Ou dizendo como o Larva sempre dizia: quando um tipo tem de esvaziá-los, qualquer tronco é macio...

Aquilo não durou muito. É claro. Nem podia. A fulana deu-lhe com os pés ainda nem o CM tinha adquirido poderes para tocar em todos os pontos sagrados, nevrálgicos e estimulantes. Pelo menos de livre vontade e sem para isso ter de passar privações e humilhações.
Andou por baixo durante meses. O que não deixa de ser caricato, para um tipo com apenas dois centímetros de altura...

Estava o CM a começar a recuperar quando eu me pirei do bairro. O meu pai estava farto de subúrbios semeados de apartamentos T2 e T3 com menos de 80 metros quadrados e fomos ainda para mais longe, onde as casas eram maiores e mais baratas. Ainda cheguei a encontrar depois alguma dessa malta, mas sinais do CM, nem vê-los.

Há quem desate a rir quando conto histórias do CM, mas não me importo grandemente. Foi uma dessas amizades de infância imensas, das que ficam para a memória. Lembrar-me dos tempos em que íamos todos de férias e o CM não pagava nem viagem nem quarto porque o metíamos no bolso, lembrar que o gajo se metia na casa-de-banho das gajas da colónia de férias e nos vinha trazer as cuecas que sacava de surra, as notas que juntávamos à barda à conta das vezes que o gajo se enfiava nos escritórios a limpar cheques-restaurante ou, ainda, de como o CM se passava aos pontapés a quem o chamava de Estrunfe...

Há muitas coisas, e quase todas elas muito boas, que guardo desses tempos. Do CM. Da restante malta. E de como foi duro para aquele tipo minorca encontrar a primeira paixão desoladora... É daquelas lições que quase todos temos. Mas poucos as temos à escala que teve o CM. Aliás, viver de tal forma desequiparada a tudo o que nos rodeia só pode ser obra de um grande homem, que ultrapassa de sobremaneira não só as dificuldades mas o seu tempo igualmente. E o CM era, pelo menos até ao tempo em que o conheci, um grande homem. Talvez por isso recorde tudo isto de forma nostálgica e incrédula. E não deixa de ser irónico, afinal, ver na manchete do Correio da Manhã de hoje a notícia "Minorca evade-se da prisão de Caxias por entre as grades".

Grande CM!
Nunca ninguém apanhou aquele gajo.


(escrito em 2004.09.02)