Tuesday, August 16, 2005

Chamam-lhe “fotógrafo”

cigarrilha na boca
máquina ao peito
um jeito curvado
este e aquele e ainda outro meio feito
mais soberbo
ou mais esquecido
ou até sem jeito
enquanto nas unhas
amareladas
e roídas
um novo concerto
de cliques e tiques
e retiques
e zooms
e esperas
e conversas com quem por ali vagueia na mesma mala de viagens feita de histórias alheias
a sair em fotografias a preto e branco das varinas
dos comícios
dos conflitos
dos desalojados
dos políticos
e dos magros, podres e outros afins assuntos
enquanto
ao fim-de-semana
ou nos outros dias fixos
as cores dos casamentos
e os bailes dos filhos
e os copos dos netos
e dos primos
e dos príncipes
e dos amigos
e de outros parecidos
a dar o rosto ao manifesto
e a lucrar com isso
enquanto o tipo que tem o telefone sempre ligado lá vai de novo uns quantos quilómetros
para uma foto-passe
para uma capa
um catálogo
um choro convulso a encher três páginas
um beijo apanhado ao longe com entrada directa no pontilhismo
e arte na fuga
de uns quantos
ou de um apenas
ou de nada
que não seja rotina
a limpar lentes sujas de pó e cuspo
a vestir roupas largas e a usar mochilas
a calçar prendas
a esfregar a barba
a explicar as histórias verdadeiras a meio com as fantasias
a perder noites
a verter copos depois
a provar jantares
acepipes
boatos
vinhos brancos
e a meter tudo no saco com prazo curto,
a esperar
mas pouco
sob o sumo dos acontecimentos
sem cessar
do mesmo fruto
para os milhares que aí se vão precavendo das viroses do Inverno
das depressões da Primavera
dos sonhos de Verão
das surpresas de Outono
sobre grelhas feitas à pressa
e com novos rostos, novos nomes, novas formas
que já se sabe
entre quem sabe
por onde andaram a fazer subir
as suas ideias
vertigens
prazeres
poderes
e outras coisas que lá vão trazendo dividendos
por entre negócio
e ócio
e prazer,
até
um dia simples
o telefone tocar para um pedido singular
de presença obrigatória
desta vez tão diferente
a pedir-se na voz trémula para repetir
para confirmar
depois do urro interno
do rubor na face
do orgulho de humano solitário após mil maratonas sob chuva e sal e sol no deserto,
do tempo de espera recompensado
agora
finalmente
não para fotografar
mas ser fotografado
no altar
pelos colegas
todos eles
enquanto se lá chega pelo próprio pé e corpo coberto de fato
um sorriso contido
nervoso
as mãos a soerguerem apenas uns centímetros
a distinção
não de aço coberto de ouro
mas de plástico
ora preto
ora cinzento
com retoques de design moderno
e preço alto
ao alto
apontada ao centro
sempre
antes e agora
e depois
sempre
sempre
sempre...
...entre uma cigarrilha na boca
um dedo de conversa
um dia inteiro fechado num canto
numa árvore
num esgoto
num carro
a mijar em garrafas de plástico
para depois
amanhã
às vezes nem isso
ir cobrir passadeiras vermelhas
visitar salas de hotel
morar por aí
conhecer tudo e todos
e no fim
na carteira
no álbum
na memória
apenas uma imagem própria feita de contornos difusos e desmaiadas cores
...como é que eu era mesmo?
ah, sim,
apenas isso,
documentalista
retratista
artista
mágico
mentiroso
verdadeiro
intruso
fiel
confidente
simpático
maldito
e mais isto
e mais aquilo
mas no fundo
tão simplesmente
fotógrafo
homem de passeios
olhares atentos
enquadramentos
jogo rápido
amigos poucos
mil cuidados
e muito sono
só isso
fotógrafo
quem tu vês por trás de algo que te olha
quem tu nunca vês
quem tu sempre procuras ver por inteiro
mas não consegues
como a estrela que aguardas retire os óculos escuros
quem tu só vês pelo que ele vê
o fotógrafo
assim
quase sempre
para ti
para quase todos
talvez até para ele mesmo
a fazer ver como ele viu,
ele que viu o mundo tão de longe e tão de perto
fotógrafo disto e daquilo
um nome na praça
nos jornais e revistas
nas galerias
nos livros pesados
nas enciclopédias
em letras muito pequeninas por baixo
em memórias que se vão desfazendo
até ficar
apenas
no papel
o seu melhor trabalho
nada mais
nada
só isso
apenas isso
ou
quem sabe
com sorte
esse e mais um outro
dois ou três para os mais afortunados
mas no tempo
é isso
essa fotografia
que permanece e que fica
vai ficando
uma palavra muda que se repete e expande cá dentro,
e talvez seja
então
por essa razão
que toda a vida sustém a rotina do muito,
por esse singular centésimo de segundo,
senão para todos
pelo menos para alguns...

e a verdade
então
talvez deambule por aí
nessa frase
de quem disse que um fotógrafo é aquele que apenas sabe procurar a vida inteira fazer
um livro só com uma palavra.


(escrito em 2004.09.10)

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