Tuesday, August 16, 2005

Chamam-lhe Roberto

Roberto. E Roberto vem. Traz um banco de madeira. E. Uma almofada. Encapada. A lona preta. E. Um lenço branco. A assoar de vez. Em quando. Em vez. A sacudir trapos. Varrer o chão. Com o sapato. A sola. A sacudir a garganta. A traqueia. O escarro. Abrir a lata. A remexer na pasta. Um dedo de conversa. Basta uma. Uma pergunta. Diga lá... Já está. Roberto não diz. Nada. Só esfrega e puxa. O lustro. A conversa. A paciência. Um lenço. Na testa. Sobre o suor. E escuta. Escuta. Nem que sejam apenas as folhas. Amarelas. Viradas. Jornal de ontem. Não reparou? Desculpe. Não pude ainda... Foi um outro... Esqueceram... São dois euros. A bota. Não é muito. Melhor não encontra. Deixe estar. Eu limpo. Não gosta? Aqui não entra. Nem uma gota. Vá por mim. Roberto. Toda a gente conhece. O Roberto. Graxista não. Engraxador. Até mulheres. Muitas. Doutoras. Sabe quanto custa hoje um par? Claro que sabe... Que pergunta. Eu não sei. Não compro. Dão-mos. Estes pediam. Eram de um deles. Um pedinte. Olhe. Vê? Digo-lhe isto. De um pedinte. Fazia mais que você. Talvez não. Você não. Mas que muita gente. Fazia. Mais. Digo-lhe mais. De uma vez deu-me dois. Dois pares. Dois para mim. Para pagar. Trouxe-me uma saca com mais. Para ele. Quase novos. Para estragar. Veja! Eu! Roberto da escova! A estragar sapatos. Mas faz-se. Tudo. Faz-se. É uma arte. Não parece. Desculpe falar assim tanto. É hoje. Não sei que deu. Diga. Diga. Foi um saco. É verdade. Para estragar. Deu-se um jeito. Faz-se tudo. Ficaram como queria. Velhos. Por dentro não. Por fora. Nada. Só remendos. Bonitos por dentro.

É... É isso. Todos os dias. Vai-se... Sabe que... Pois... é isso, é isso... Tem razão. Não joga nada. Esse também. Não manda. Ora no tempo!... Digo-lhe isto: ...não acha?Roberto!

Sente-se.
Roberto. Escova na mão. Na mesma rua. A engraxar vontades. Polir desejos. Vaidades. Medos. O lustro nos egos. Notícias. Más-línguas. Boas novas. Mentiras. Tretas. A graxa tapa. Tudo.
Ora isso agora...
Faça então três euros. Tiro-lhe meio.

Roberto é assim. Mais um. Tipo. Da rua. Sentado. Agarrado. Aos trapos. À escova. Aos pés. Curvado. És assim. No passeio. Sob o toldo. A fiar o pêlo. Os beiços. Puídos. Sobrepintados. As unhas. Pretas. E as gretas. Escondidas. Sob camadas. Várias camadas. Muitas camadas. Sobre camadas.

Um tacto rude. Áspero.
O pé esmagado. Os dedos. Num vai. Num vem. E vai. De novo. E vem...
Digo-lhe isto: não é chato.
Para fazer bem. Tem de ser assim. Fazer sempre. Todos os dias. Sempre. Fazer o mesmo. Assim é que fica bom. Vê? Perfeito. É isto. Todos os dias. Olhe!
Deixe-me usar castanho. Confia?

Digo-lhe isto: ou mudam. Ou mudamo-nos. Ou mudam-nos. Foi tal qual. Um doutor. No outro dia. Fiquei a pensar. Faz sentido. Pense. Vai ver que. Pense.

Digo-lhe isto: quando morrer, cobrem-me. De graxa. É o meu fato. Lá em baixo não há frio.
Digo-lhe: quando acabar a graxa. Acabo. E que acabe. Vai ver. Todos. Toda a gente. A cuspir em si. Não em si. Em você. Em si. Em si mesmo. Todos. A cuspir-se. Passar lustro na calça. Nas meias. Vou gostar. Vai ver. Para ser diferente.

Digo-lhe: não é a toa que me chamam Roberto.
Olhe. Quando quiser. Estou por aqui. A engraxar sapatos. É só o que faço. Não era bom? Assim? Todos? A fazermos só isso? Uma coisa?
Digo-lhe: era um outro mundo.
Quando quiser. Passe aqui. Pergunte ao Roberto. É assim que todos. Roberto. Me chamam. Roberto.


(escrito em 2004.09.29)

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