Wednesday, October 19, 2005

Chamam-me “gordo”

Gordo. Gorducho. Rechonchudo. Obeso. Bola. Adiposo. Forte. Anafado. Baleia. Balofo. Chama tu. Ele. Todos. Chama lá. Tens chamado. Diz-me na cara. Se eu pudesse. Oh. Se eu pudesse. Não digo. Penso. Maldito. Que tens tu? Perfeito? Chamam-me assim. Sei. Sei de certeza que chamam. Chamam isto e mais. Já ouvi. Já mo disseram. Até ao ouvido. Mas é quase sempre de longe. Quase sempre. Em sussurro. Para o lado. Como quando se cospe. Às vezes dizem que é na brincadeira. E chamam: “Ó gordo!”. Chamam mesmo. Já chamaram. Tantas vezes! Andava eu na escola e já chamavam. Sabem lá. Não sabem.

Entro numa loja. Chamam. Olham. Chamam a olhar.

Saio do carro. Olho em volta. Todos me chamam. O olhar chama.

Não olhem.
Não de frente. Que tem? O meu umbigo. Todos temos. É um direito. Não precisa ser igual. Dilatado. Só isso. Peito descaído. Não é. Nada disso. Eu sei-o. Mas não precisam sempre olhar. Estar a chamar-me. Gordo. Gordo. Gordo... A olhar. Gordo. Gordo. Gordo... A apontar. Gordo. Gordo. Gordo...

Em casa. Vivo. Paz. Silêncio. Nem um só olhar. Às vezes. O contrário. O oposto. Todos ligam as tv’s. Às vezes tiram o som. Olham. Olham. E olham. Eu não. Não olho. Tiro os olhos. Dos outros. A imagem passa a preto. Só preto. Não me chamam mais. Cegos. Como na rádio. Ao telefone. Numa carta. Antes fosse. Já foi. A Clarinha. Falávamos muito. Mas depois. Tudo igual. Como as outras. Tudo bonito. No reino da fantasia é tudo bonito. Elas vêm só com o coração. Mas só quando não podem ver com os olhos. Nem passámos de duas horas. Um mês... Falámos um mês. Um mês para depois... Aquilo. Isto. Tudo. Igual. Todos. Chamem lá. Gordo. Baleia é a tua mãe. Palhaços. Queria a minha mãe ter netos. Nunca. Crianças. São as piores. Nem pensar. Pai gordo. Bastou o meu. Basto eu. Chego.

Ao trabalho não ligo. Ando ocupado. Mas olham. De certeza. Olham. Que eu sei. Olham todos. Não me preocupo. Sabem a pergunta? De que cor são os meus olhos? Ninguém sabe. Só a minha mãe. Acho. Mas a barriga sabem. Guardam bem direitinho. “Tenho lá um gajo no trabalho que parece que anda grávido!”. “Anda lá um com uma barriga de 8 meses!”. “De gémeos!”. O costume. Eu não ligo. Já liguei. Nem os olho. Não preciso. Olho os tectos. Os cantos. As fendas. As juntas. Os planos. As plantas. Alicerces. Mais um traço. É preciso. Aqui. E ali. Corrigir isto. Aquilo. Chegam as 8. Nem faço caso. Saem todos. Eu não noto. Desligo. Saio.

Um dia. Um dia digo. Chamem-me gordo outra vez. Chamem. Não tenho problemas em admiti-lo. Mas não gosto. É diferente. Uma coisa não tem a ver com a outra. Sei que sou gordo. Não é por isso que me podem chamá-lo. Haja respeito. Sou apenas um homem. Engenheiro arquitecto. Pau para toda a obra. Tenho arcaboiço para isso. É o meu trabalho. Como. Sabe-me bem. Pronto. Está dito.

Chamam-me gordo em todo o lado. Por todo o sítio. Toda a gente. Já fiquei fulo. Hoje. Menos. Menos vezes. Mas mais gordo. Nem vou ao médico. Mas já me mandaram. Até para o circo.
Esqueço.

Não interessa.

Chamem lá gordo. Gorducho. Rechonchudo. Obeso. Bola. Adiposo. Forte. Anafado. Baleia. Texugo. Elefante. Gorduroso. Nojento. Doente...

Sou eu.
Vítor Coelho...
Destino cínico.
Até ele.
Até o nome.
Até o nome me dá fome.




(escrito em 2004.09.30)

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