Wednesday, January 12, 2005

Chamam-me Rui Jorge dos Santos Carvalho

Nem é como eu me chamo. Ou melhor, não é como eu me tenho ditamente visto sob entidade consciente; não é a minha imagem alfabética e verbalmente sígnica, diriam os semiologistas ou sistémicos... não me lembro qual deles o mais correcto aqui para o caso.

Mas, pelos vistos, o que aqui importa neste tempo (e concomitantemente nesta sociedade) é o valor e a sentença ditados pela maioria, ou pela média. Seja como for, nós mesmos nunca temos a palavra.

Por muito que eu fale e reclame, por muito que me possa orgulhar ou me seja indiferente, é um facto inegável de que o nome inscrito no título é mesmo o que vem no meu B.I. bege pálido, selado a branco e revestido a plástico duro, tal e qual, com a minha caligrafia na assinatura, sob a foto, na frente, e escrito à máquina no verso. A legibilidade do segundo caso é evidentemente preferível por todos os que consultam o documento.

O "dos" no meio do nome custou-me, certa vez, um regresso a casa, desde o centro da cidade, e novo retorno à baixa, no dia seguinte. Tudo porque ao preencher uns papéis para o serviço militar mo não tinham posto. Pediram desculpa, mas disseram que isso fazia muita diferença. Aliás, toda a diferença. E não aceitaram os papéis. Subiram ainda o sobrolho, torceram um pouco os lábios e de olhar afiado revistaram-me perscrutadoramente e afincadamente dos pés à cabeça. Felizmente nem estava muito mal vestido. "Era absolutamente necessário que eu preenchesse novamente os papéis". Finalmente soltaram todas as amarras que esticavam a tensão dos músculos, baixaram de novo o olhar sobre os papéis pousados na mesa e exprimiram apenas a verificação de um problema evidente à sua frente, um problema bicudo e quase irresolúvel, um caso difícil de ultrapassar a verificar-se a minha insistência negativa à proposta, definitivamente caótico se executada a minha acção de avançar com o documento tal como se apresentava, "ainda mais sabendo eu, em plena consciência e esclarecimento da situação e dos factos, do que se estava ali a passar".
E nisto lá fui saindo, quando se preparavam para fechar.

Voltei no dia seguinte com novos papéis preenchidos e o "dos" carregado em três passagens de caneta, para que a quem fosse tratar daquilo não lhe passasse despercebido à vista. No fim, pelo menos, recebi de volta um sorriso simpático pela minha cumplicidade e subserviência prestada. Achei que aquilo tinha sido uma qualquer prova a que eu acabara de passar com distinção, e fui-me embora...

Contudo, nem sempre sou estas 25 letras... ou melhor, estas 25 letras e 4 espaços por esta ordem. Por vezes gosto de baralhar tudo, mesmo comigo, tal como acontece com os papéis que vou deixando espalhados sobre a secretária. Assim igualmente com o meu nome: d-R-v-g-a-r-o-s-J-o-s-d... Bem vistas as coisas de longe, o caos gerado acaba também por gerar alguma reflexão filosófica de quem não tem mais nada de interessante para fazer. Mas basta ir buscar o pano do pó para reorganizar tudo pela ordem convencionalista das coisas, tal como faço com o meu quarto, de 15 em 15 dias, ou quando calha.

O que não deixa de ser uma ideia curiosa é esta de arranjarmos o nosso nome tal como arranjamos o nosso quarto, tal como mudamos a água ao aquário ou cuidamos de uma planta ou lavamos o nosso cão...

Contudo, por vezes é-me permitido deixar o campo das letras e ter o privilégio de possuir um número só meu. Sou então o 102689969. Tenho outros números, mas dizem-me que este é o mais importante. Chamam-lhe "número de contribuinte". E creio que uma grande parte das pessoas não o nota, mas a designação ecuménica, desde logo, presume que vamos contribuir com alguma coisa. Talvez seja por isso que o tornem indispensável para qualquer coisa, nos dias de hoje. Pelo menos todas as instituições bancárias e repartições do Estado o pedem.
Eles lá sabem.

Ainda assim, eu gostava de ver o dossier assinado pelas partes que elaboraram e autorizaram e selaram o aval do cartão. Mas o que eu gostava mesmo era de meter conversa com a rapariga da frente. Pergunto-me qual seria a reacção dela se eu neste momento simplesmente desaparecesse.
O caos planetário?
O país com os noticiários à minha procura?
E tudo desvairado como uma mosca em piruetas, até a miúda deixar a barra de chocolate e perguntar à senhora do lado "De que estão a falar?" ou "Que se passa?".
E o que é que a senhora lhe poderia dizer!?
-Olhe, parece que desapareceu o 102689969.
Ou então:
-Olhe, parece que ninguém sabe onde pára o Rui Jorge dos Santos Carvalho.

Mas o mais curioso é que se eu fizesse desaparecer toda e qualquer nomenclatura e referência simbólica minhas, como saberiam quem procurar!? E se apagasse mesmo de todos os registos fotográficos a memória do meu rosto?!?
-Boa noite. Desapareceu, hoje, alguém. As entidades envolvidas na busca do indivíduo ainda não sabem quem ele é, apenas que desapareceu. Os pais todos do país choram e estão em pânico, porque ninguém sabe se se trata de um filho seu. Para além dos pais, a generalidade dos portugueses aguarda com impaciência, e sem por de lado o inevitável choque, de saber de quem se trata; se alguém das suas famílias ou grupo de amigos, ou simplesmente um desconhecido. A Polícia de Segurança Pública, a Guarda Nacional Republicana e, até mesmo, já um elemento da Secreta Portuguesa, vieram afirmar que, em princípio, não se deverá tratar de nenhum indivíduo perigoso. As empresas, nacionais e estrangeiras, lançaram o alerta, e dá-se agora uma corrida contra o tempo para verificar todos os relatórios de presenças dos últimos dias, na busca de alguma ausência, ainda que tal tarefa de pouco valha, pois todo e qualquer registo da pessoa desaparecida teve esse mesmo destino, e procurar uma coisa que não se sabe o que é torna-se, portanto, uma tarefa inglória e destinada ao fracasso logo à partida. A certeza, essa, é só uma: alguém desapareceu, e não fui eu.

Seria engraçado, para aumentar o tom caótico e estapafúrdio da situação, se nesse preciso instante a electricidade fosse abaixo e a emissão desaparecesse. Mais ainda se fosse noite e toda a gente ficasse às escuras. Creio que, nas suas casas, abraçados pelas quatro paredes de suas salas ou quartos, os telespectadores ou radiouvintes ficariam primeiro estarrecidos num sufoco abismal e apavorado, posteriormente rebentando num pranto alongado e histérico, berreiro digno de ser registado em banda magnética. O digno sangue-frio que se dispusesse a ir buscar, calmamente, o aparelho gravador ao seu armário, e que gravasse em qualidade estéreo o grito geral, à medida que fosse passeando pelos corredores dos prédios e até pelas ruas, poderia depois de todo o alarido lançar um álbum, quem sabe, intitulado "Crying for Disappearance Suite in Si Minor". Claro que depois, como faixas extra, em oferta aos fãs, estariam a "Improviso em Martelo Pneumático" ou mesmo a "Sonata em Telemóvel Sem Bateria", esta última uma faixa experimentalista onde um imenso silêncio poderia ser ouvido durante alguns escassos segundos. Quanto ao sucesso da primeira faixa extra, ele em muito dependeria do tipo de terreno (perdão, palco) em que (onde) se executaria a obra (perdão novamente: peça), bem como a marca do martelo (dito instrumento) e até da força do seu operador (artista).
Quanto a mim...
...quanto a mim...
mim
Uma palavra capicua que em português é excelente para o que designa, porque não cessa um constante vai e vem que, profundamente e fundamentalmente, é isso mesmo que simboliza: uma pergunta-resposta, mas sem resposta, a responder-se com perguntas, sem fim: <-> m <-> i <-> m <-> i <-> m <-> i (...)
mim
E daí?
Será que o país e o Estado e as empresas ficariam mais descansados depois de descobrirem o meu nome?
Certamente ficariam.

E ficaria mais esclarecida esta miúda com a sua barra de chocolate já no fim?
Talvez um bocadinho; quase como o resto da barra que vai agora termin... não, guardou-a no resto do plástico; ou já estava enjoada; ou talvez seja um ritual...

E nisto, acredito veementemente e finalmente que pelo menos alguma coisa significaria se a senhora do lado lhe divulgasse que o rapaz (dica X) desaparecido se considerava um discípulo de Sócrates quanto à sua nacionalidade (dicas Y e Z) e que gostava de rosas e margaridas (dicas V e W) e que o azul era a sua cor preferida (dica R), sendo que uma das suas paixões era viajar, outra ouvir música e outras ir ao cinema, estar com os amigos, conversar sobre tudo menos coscuvilhices, ler e escrever (dicas A, F, D, P, Q, K e S). Seria uma combinação que elegeria da massa amorfa da sociedade tanto esclarecimento quanto dizer que o meu nome era Rui Jorge dos Santos Carvalho e o meu número de contribuinte 102689969. Contudo sempre daria um esboço mais simpático e imaginativo, obtendo mais pontos pelo romantismo despertado e pelo tempo ocupado a traçar um retrato-robot. Ou seja, sempre seria mais qualquer coisa, e alguma coisa mais interessante, ou quem sabe do total com algumas coisas interessantes e certas coisas desinteressantes, sendo outras coisas completamente dispensáveis e trocáveis por qualquer outra coisa comum com as coisas dela. Resumidamente: daria para emitir uma opinião, nem que escassa e mal baseada, mas sempre uma opinião.

Mas o que importa retirar desta minha odisseia será, talvez (perdoe-se-me o abuso convencido e chato) uma coisa: que eu me chamo o nome que me deram, o nome que todos os dias me lembram, o nome que eu sou obrigado a dar para não gerar confusão nos outros e até em mim; mas ninguém me chama ainda o nome que eu gostaria, e a razão, essa, é simples, difícil ou impossível de resolvê-la eu por mim mesmo, e contudo leve, serena na imagem e situação, pois que é apenas porque a cama está vazia e, também, por outro lado, as gavetas cheias.
Contraditório?
Confuso.
Talvez... mas eu digo que nem por isso, só à primeira vista. E quem sabe, talvez seja mesmo por ela que as duas situações vão tendo pouso fixo...
Nisto termino e assino:
-o próprio.

(escrito em 2002.04.27)

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