Wednesday, October 19, 2005

Chamavam-lhe “O Marinheiro”

No dia 1 de Janeiro do ano de 2002, mais conhecido pelas bocas dos transeuntes como o “dia de ano novo”, pelos bancários e economistas como o “dia de estreia do euro”, pelos trabalhadores da meia-noite como o “nunca mais passa?!” e pela minha avó simplesmente como “ano novo ou ano velho são todos iguais!”... Corria, portanto, já o primeiro dia do ano a seguir ao anterior - para os curiosos, a saber uma terça-feira- quando todos os locais de uma pequena vila deixaram de ver, nas regulares ocasionais aparições pelos cafés e pastelarias e restaurantes aquele que era conhecido e a quem chamavam de “Marinheiro Ex-Reformado”, ou simplesmente “O Marinheiro” ou, ainda, “o Ex-Reformado”, que isto gente parcial abunda por toda a parte...

Quem saberia a sua real situação, desconhecia-se, mas era caricata. As perguntas sucediam-se como a praça ao meio-dia, mas as respostas desertificavam-se como a praia vista de madrugada. Pelas bancadas dos cafés e varandas de vizinhas, contudo, era certa a nascente do bizarro título, pois que só aí mesmo surgia este tema para conversa.

Mas que fazia ele antes? Pescador ou marinheiro.
Mas chegara à reforma?...
Quem saberia?...
Sabia-o o próprio, de certeza.
Mas alguém lho escutara?
Alguém o escutara?...
Talvez o tivesse dito num momento de clareza de voz sobre as outras sempre amontoadas.
Mas em que dia?...
Quem tinha estado atento?...
“O Ex-Reformado”...

...Posição de vida curiosa para quem escutava tal coisa pela primeira vez, mas como não o escutava da boca do próprio tornava-se assim matéria mais para um sorriso que título de loucura. Seria um homem indeciso... Ou talvez um rotineiro ciclo do faz e desfaz, desiste e volta a tentar... um daqueles velhos que do hábito de uma vida a trabalhar já não consegue estar quieto.
O facto, esse indesmentível e que ficaria mesmo para a história da vila, é que nesse primeiro dia do ano se deixou de ver pelos poisos de costume o conhecido de longe marinheiro, pescador, ex-reformado solitário misterioso.

Os que, do tempo tendo-o visto mais do que uma vez, podiam agora recriar parte da sua rotina, relatando em pequenos movimentos de braços -a maior parte apoiados numa coxa ou sobre o pau de uma bengala- como aquele homem se deixava estar por ali, sempre discreto, sempre a uma mesa sentado de forma desleixada, desajeitada e descuidada, sempre de camisa grossa com as pontas de fora da camisola e quase sempre de costas voltadas para a parede. Sempre assim. O corpo começava curvado sobre a mesa, depois ia-se voltando, ficando de lado, e a dada altura já tinha escorregado pela cadeira envernizada e a mão segurava a cabeça, uma cabeça robusta e redonda e de cabelos desalinhados e grisalhos a cobri-la, uma cabeça com um rosto definido e de rugas fundas, barba por fazer e rija, dois olhos cinzentos que olhavam o que iam olhando por olhar, ou realmente estariam menos atentos do que aparentavam e atentavam nos restantes, em amizades com as companhias humanas e alimentares. Quanto a si, quase sempre se deixava entregue apenas ao seu copo de cerveja, que nunca bebia até ao fim, alguém o notara uma vez. E quem dono dos cafés, não perguntava mais do que aquilo que já se sabia. E o marinheiro na ex-reforma nada também dizia por acrescento, nem sequer uma nova ruga se lhe desenhava por isso, talvez um completo alheamento a tal curiosidade fosse o que lhe pairasse na alma verdadeiramente.

E assim, com uma história comprovada e conhecida que se poderia resumir a duas linhas de uma coluna de jornal, se deixou de saber no primeiro dia do ano de 2002 mais alguma coisa desta presença regular, ainda que discreta e só notada pelos de maior frequência nas cadeiras e com tempo de sobra, e também com alguma visão atenta.

Contudo, o mais triste nem seria este dia de decisivo abandono ou desaparecimento deste homem tão curioso aos outros como tão pacífico e reservado.

O mais triste foi, meses depois do seu desaparecimento confirmado pelo tempo, quando já o próprio facto esmorecera pelo acontecimento em si ou quando só os resquícios do seu nome e título sobreviviam, aparecendo a seguir aos temas vagos de recurso “tempo”, “clima” e “lá por casa”, foi só então que se descobriu, por um qualquer parente afastado ou conhecido de confiança que veio limpar e vender a casa –falada e nomeada localmente por “velha barraca carcomida”-, que muitas histórias havia da boca deste homem escritas em papel, histórias que decerto, se alguém lhas tivesse pedido, certamente as teria contado, apenas e muito provavelmente com a mínima exigência de ser à noite e em volta de uma lareira, ao borralho, esquentado até mais pela atenção em volta e pelo copo ao lado.

Recriminaram-se alguns por não terem insistido em quebrar-lhe o silêncio, puxando a língua deste velho até muito bem conservado. Outros cedo esqueceram isso e do mesmo modo se debruçaram no testemunho legado ao futuro ou mais propriamente ao acaso.

Eram papéis intermináveis, folhas sobre folhas que se juntavam em blocos e formavam pilhas onde se seguravam prateleiras intermináveis com mil e um artifícios e ‘souvenirs’ artesanais que fizera e ali deixara, como tudo o resto, à excepção da sua presença em corpo e vestimenta.
De entre todas, havia uma bela história, com certeza autobiográfica, a narrar as aventuras e desventuras de um jovem oficial da marinha; este, segundo se contava, ter-se-ia apaixonado verdadeiramente num certo dia de Verão, depois de mil portos visitados e o triplo das viagens rendidas ao serviço da companhia; contudo, o destino ou a vida simplesmente em si, fora-lhe traiçoeira e trágica, e apaixonara-se o jovem oficial pela única mulher que, de entre milhares, viria a desaparecer no mar, fatidicamente, um ano depois de consumado o casamento de ambos, ocorrência esta suficiente e, segundo alguns, até justificável e sem repreensão, que levou então o jovem oficial a desistir da carreira de uniforme e a enveredar por um labiríntico rodopio de mais de 30 anos no mar a segurar a roda do leme pelo traço de rotas mercantes secundárias e perigosas tanto quanto a morte; Mediterrâneo, Atlântico e até o Árctico, sem contar a rotina pelo Mar do Norte... sempre a desafiar a vida, sempre no fio da navalha, e nunca, nem por uma só vez, o barco em que seguia se voltou, nunca mais de uma vela se rasgou, nunca um motor quebrou... após tal evidência aceite daquilo que o esperava, ou melhor dizendo, do que ele teria de esperar, afastou-se de todos quantos conhecia e foi encontrar, remotamente, um local calmo e pacífico, onde numa simples barca se deixou a apanhar peixe diariamente; aprendeu meia-dúzia de palavras da língua natal da sua nova casa (ahh!, exclamaram os naturais e os biógrafos quando deitaram pela primeira vez os olhos aos papéis com as histórias) e foi vivendo do pouco dinheiro do peixe seco que então já ia reunindo alguns adeptos, escassos fanáticos mas vários curiosos; com o tempo, a carne ficara mais balofa e envolta por gordura, e apenas nas arestas da face a expressão seca pelo sol e pelo sal se mantinha; a barba era sempre de dias; a expressão distante; a voz muda; enfim a figura desaparecera como aparecera.

Nas demais histórias incluíam-se, entre as que posteriormente foram traduzidas e publicadas, a de um caranguejo medroso e a de um cavalo marinho que saltava mais ostras juntas que qualquer outro, relatos de viagens, aventuras no mar alto (colocadas estas nas prateleiras temáticas das bibliotecas junto ao "Moby Dick" do Melville, o que decerto muito teria orgulhado ao marinheiro agora também autor misterioso) e também pequenos contos inacabados, outros refeitos e com finais diversos, alguma poesia, narrações desconexas, vários diários e muitas cartas, ainda seladas e deixadas por enviar.

Alguns desenhos e ilustrações deste misterioso estrangeiro, que preenchiam várias das páginas brancas e virginais na compra dos cadernos, foram também reproduzidas na tipografia local da vila, depois distribuídas pelas crianças, que as pintaram a seu gosto, e finalmente os melhores resultados expostos no salão da Câmara; daí, alguns seleccionáveis, entre dedicácias e pinturas de autores consagrados em homenagem à personagem misteriosa, seriam também reproduzidos, expostos e publicados, este último verbo apenas para uma dezena de entre os previamente escolhidos, a rematar a compilação com o aval e mecenato da Câmara, a celebrar as tradições piscatórias e marítimas da vila.

A verdade, no entanto, é que o desaparecimento de alguns homens, ao que parece, é rápido e instantâneo, quando de imediato se dá pela sua partida, como também pode ser presenciado e mantido por instantes mas sem se afastar do fugaz, situação em que o facto não passa despercebido mas também não ocupa preocupações, como pode ser nunca desprovido de mistério, tragédia e uma boa dose de romantismo, no caso de raros factos haver para explicar e descrever o enquadramento, sempre gerando portanto efabulações, dúvidas e várias versões para a mesma história incompleta, todas tão parcas de confirmação quanto recheadas de segredos, enigmas e até mitos, assim alongando-se no tempo.

As crianças, essas, aproveitam o que existe para sussurrarem aos ouvidos umas das outras, e sobretudo das mais velhas para as mais novas e pequenas, nas noites mais nevoentas e frias, que o marinheiro de lança à caça de baleias deixará o mar alto para vir à costa e bem depois bem dentro da vila espetar a lâmina e apanhar para si o primeiro desgraçado, afogando-o em seguida e sem piedade, voltando depois sedento para os indesejados, os amedrontados, os que chorarem ou gemerem nem que baixinho debaixo dos lençóis.

Os pais deixam as lendas levitar e vaguear com sorrisos nostálgicos.

Os mais velhos de todos, de mãos nas coxas e bengalas, voltam a repetir os mesmos relatos sobre “O Marinheiro Ex-Reformado”, agora já nomeado como “Marinheiro Desaparecido”, que a excertos colados aqui expus neste primeiro dia do ano de 2002, quando vão já começando a circular moedas novas pelos dedos das mãos de todos, pelos balcões ora sujos ora limpos, pelos bolsos mais pesados.

Distantes de tudo isto, a apenas alguns metros, na areia da praia, as gaivotas vão levantando voo.


(escrito em 2002.01.01)

Chamam-me “gordo”

Gordo. Gorducho. Rechonchudo. Obeso. Bola. Adiposo. Forte. Anafado. Baleia. Balofo. Chama tu. Ele. Todos. Chama lá. Tens chamado. Diz-me na cara. Se eu pudesse. Oh. Se eu pudesse. Não digo. Penso. Maldito. Que tens tu? Perfeito? Chamam-me assim. Sei. Sei de certeza que chamam. Chamam isto e mais. Já ouvi. Já mo disseram. Até ao ouvido. Mas é quase sempre de longe. Quase sempre. Em sussurro. Para o lado. Como quando se cospe. Às vezes dizem que é na brincadeira. E chamam: “Ó gordo!”. Chamam mesmo. Já chamaram. Tantas vezes! Andava eu na escola e já chamavam. Sabem lá. Não sabem.

Entro numa loja. Chamam. Olham. Chamam a olhar.

Saio do carro. Olho em volta. Todos me chamam. O olhar chama.

Não olhem.
Não de frente. Que tem? O meu umbigo. Todos temos. É um direito. Não precisa ser igual. Dilatado. Só isso. Peito descaído. Não é. Nada disso. Eu sei-o. Mas não precisam sempre olhar. Estar a chamar-me. Gordo. Gordo. Gordo... A olhar. Gordo. Gordo. Gordo... A apontar. Gordo. Gordo. Gordo...

Em casa. Vivo. Paz. Silêncio. Nem um só olhar. Às vezes. O contrário. O oposto. Todos ligam as tv’s. Às vezes tiram o som. Olham. Olham. E olham. Eu não. Não olho. Tiro os olhos. Dos outros. A imagem passa a preto. Só preto. Não me chamam mais. Cegos. Como na rádio. Ao telefone. Numa carta. Antes fosse. Já foi. A Clarinha. Falávamos muito. Mas depois. Tudo igual. Como as outras. Tudo bonito. No reino da fantasia é tudo bonito. Elas vêm só com o coração. Mas só quando não podem ver com os olhos. Nem passámos de duas horas. Um mês... Falámos um mês. Um mês para depois... Aquilo. Isto. Tudo. Igual. Todos. Chamem lá. Gordo. Baleia é a tua mãe. Palhaços. Queria a minha mãe ter netos. Nunca. Crianças. São as piores. Nem pensar. Pai gordo. Bastou o meu. Basto eu. Chego.

Ao trabalho não ligo. Ando ocupado. Mas olham. De certeza. Olham. Que eu sei. Olham todos. Não me preocupo. Sabem a pergunta? De que cor são os meus olhos? Ninguém sabe. Só a minha mãe. Acho. Mas a barriga sabem. Guardam bem direitinho. “Tenho lá um gajo no trabalho que parece que anda grávido!”. “Anda lá um com uma barriga de 8 meses!”. “De gémeos!”. O costume. Eu não ligo. Já liguei. Nem os olho. Não preciso. Olho os tectos. Os cantos. As fendas. As juntas. Os planos. As plantas. Alicerces. Mais um traço. É preciso. Aqui. E ali. Corrigir isto. Aquilo. Chegam as 8. Nem faço caso. Saem todos. Eu não noto. Desligo. Saio.

Um dia. Um dia digo. Chamem-me gordo outra vez. Chamem. Não tenho problemas em admiti-lo. Mas não gosto. É diferente. Uma coisa não tem a ver com a outra. Sei que sou gordo. Não é por isso que me podem chamá-lo. Haja respeito. Sou apenas um homem. Engenheiro arquitecto. Pau para toda a obra. Tenho arcaboiço para isso. É o meu trabalho. Como. Sabe-me bem. Pronto. Está dito.

Chamam-me gordo em todo o lado. Por todo o sítio. Toda a gente. Já fiquei fulo. Hoje. Menos. Menos vezes. Mas mais gordo. Nem vou ao médico. Mas já me mandaram. Até para o circo.
Esqueço.

Não interessa.

Chamem lá gordo. Gorducho. Rechonchudo. Obeso. Bola. Adiposo. Forte. Anafado. Baleia. Texugo. Elefante. Gorduroso. Nojento. Doente...

Sou eu.
Vítor Coelho...
Destino cínico.
Até ele.
Até o nome.
Até o nome me dá fome.




(escrito em 2004.09.30)

Tuesday, August 23, 2005

Chamam o Tempo

Não corre. Viaja. Não pára. Fica. E passa. A mão. Mostra. Leva. Oferece. Quem o viu. Quem o vê. Diz tudo. Tudo. Apaga. Muda. Transforma. E tu? Leva-lo? Contigo. Connosco. Viste. Amargo. Árduo. Aceso. Vilão. Amigo. Um livro. Sem papel. Sem palavras. Sem código. Sem signo. Uma rua. Sem sinal. Apenas isso. Rua. Sem marco. Sem traço. Um espaço. Um deserto. Aberto. Sem braço. Sem pega. Rua aberta. Sem prédios. Nem um botão. Nada. Só rua. O tempo. Uma rua sem vista. Passa. Passa. Passa. Deixa passar. Tudo passa. A pé. Devagar. Devagarinho. Como o sofrimento. Talvez. Talvez por isso. Talvez? Talvez por isso o magoem. Porque magoa. Porque não muda. Frio. Mudo. Surdo. Cego. O tempo. O teu. De todos. Sem âncora. Sempre assim. Por aí. Criança. Perdido. Como o vento. Mãos dadas. Sem paragem. Onde o encontras? No relógio. Não vale. Mentira. Não vale. Um conto. É só isso. Simulacro. Mentirinha. Faz de conta. O verdadeiro. Esse. O tempo cru. Não se conta.

O tempo não se conta.

Chamam-lhe tempo. Ao tempo. Ao verdadeiro. Que não se dá conta. Que se espera que passe. Que se quer que não passe. Que se abomina quando. Que se aguarda. Parado. Se perde. Esguio. Delgado. Sem ponteiros. Sem marcas no solo. Sem bitolas. Sem sinos. Só manifestações. É ele. Aí sim. É ele. O tempo. Manifesto. Discreto. A mostrar-se. Nas rugas. Fotografias. Nas coisas perdidas. Nos estragos. Isto funcionava... Era assim... Quando mexia, era...

Se a caverna se fecha. Apaga. Se tuo lá dentro. Te fechas. Se o mundo morre. Se tudo escreve vou-me. Embora. Para sempre. Não adianta. O tempo fica. Não pára. Mas deambula. Passa. mostra. Leva. Só traz para isso. Levar. Tudo morreu? Tu não? O tempo não morre. Abstracto. E directo. A contar-te. Tum. Tum. Espaço. Tum. Tum. Espaço. Tum. Tum. Bate mais fraco. O coração. É ele. Aqui tão perto. Ao ouvido. A dizer-te. Estou aqui. Tão perto. Não te deixei. Nunca deixo. Mesmo sem teres a luz. Sem teres mais que isto. Um buraco. Eu não deixo. Fico. Parto. Mas volto. Estou aqui. Como o outro. Sempre. O mais forte. Até depois de perderes o sangue. Os ossos. Eu aqui. Sempre.

Por isso lhe chamam tempo. O mestre. Salgado. Distante. Forte. Um Deus maior. Quem vê? Quem sabe? O que é? Sem palavras? Sem palavras. Ninguém sabe. Só vendo. Pelo menos assim.
Chamam-lhe tempo. Para chamar. Para saber. Ter a certeza. Murmurar. Para dentro. Ou num grito. Tempo. E nesse instante sabê-lo. Está aqui. Mas está. Sempre. Basta olhá-lo. Não vês? Tão estranho... Ele está aqui. Aqui mesmo. Não vês? Como fazes com os outros? O Tempo está cá há mais tempo. Não vês?

Chama-o.

Tempo.

Ele vem.

Vem logo. Num ápice. Um instante. Vem sempre. Quando. A quem. Onde. Sem porquê. Vem. Só isso. Aparece. Criança. Aos pulos. Ou como lençol ao vento. Andam juntos, não é?
Andam.

Acho que andam.

Quem me disse. Não sei. Deve ter visto. Por aí. Na rua. Sem pegas nem braços nem traves nem marcos nem sinais. Sem poder agarrá-lo. Senão com olhos. Com os olhos. Do pensamento.
Tempo.
Ah, estás aí...
Obrigado.
Tempo.
Ah, estás aí...

Chamam-lhe Tempo. Chamam-no. Por vezes muitas. Outras. Nem tanto. Tempo. Tempo. Tempo. Estás aí. Mas se o chamam. Será talvez. Talvez mais. Não para sabê-lo. Mas saber-se. Saberem. Estou aqui. Tinha-me esquecido. Talvez... talvez por isso...

Tempo.

Ah, estou aqui.

Obrigado.



(escrito em 204.09.24)

Chamavam-lhe “Santos Carlos”

Chamavam-lhe... perdão, ele insistia em que o chamassem e tratassem e nomeassem pelo apelido Carlos e nome Santos.
-Santos Carlos!

É lógico que o inverso estava patenteado no passaporte e carta de condução, bem como na fotocópia do B.I., que o original onde é que já ia ninguém sabia...
Contudo, e ainda que fosse de louvar a sua ideia de se chamar e ser chamado como se uma ficha desportiva se tratasse, "Santos, Carlos", com a decorrente ironia da inversão originar um plural de fé, a verdade é que ele se ria tanto de cada vez que se apresentava pela primeira vez a uma qualquer nova pessoa que, por isso, logo lhe retirava qualquer hipótese de sucesso pela iniciativa, originando imediatamente no receptor da mensagem os graus de 'grande' e 'enorme', o que até nem seria mau de todo, se não estivessem a preceder as categorias de ‘louco’ e 'anormal'.

Santos Carlos, contudo, ignorava a generalidade de todas estas coisas, e logo a seguir à apresentação do seu nome invertido completava:
-Santos Carlos, ex-ascensorista.

Depois, variava, ora colocando o términos do "tcham" que achava impactar nas pessoas com um solene "um prazer" ou um também não menos usual “às suas ordens”.
Daí, várias situações se podiam originar.
Uma das mais frequentes era Santos Carlos debandar em procura de outra alma, mais conhecida e já habituada aos seus devaneios e histórias, e principiar por chatear com a repetição de lenga-lengas sobre marquesas que conhecera no Hotel Tivoli ou no Ritz, que fora ele quem dera o conselho final ao presidente em visita ( e do qual, curiosamente, não sabia o nome nem descrição sequer aproximada) do Four Seasons para se consumar a fusão entre esses dois gigantes, ainda que o topo do Sheraton vira já um homicídio ocultado ou que no quarto do 6º piso (número a não revelar por obrigação e princípio de profissional do meio) se deixara estar 8 horas seguidas em sucessivas partidas de Póker com um grupo de empresários alemães.

Outra situação surgia quando, sabe-se lá porquê, algum dos recentemente apresentados se mostrava impressionado com a personalidade de Carlos Santos. Aí ele não se calava mais. Mediano de estatura esticava-se e parecia ganhar mais 5 centímetros, a barba apenas de dois dias era cofiada à mesma, num gesto sábio e de quem reflecte imenso na vida, os cabelos lisos muito bem penteados para um dos lados alisados ocasionalmente, e a pose de um sábio a fazer semicerrar os olhos nos momentos mais secretos e a iluminá-los durante uma anedota, que, claro, era contada no original alemão/francês/inglês/italiano e com concomitante tradução frase-a-frase para o português, resultando numa galhofa final dele e em simples sorriso delicado ou simpático do ouvinte.

A minha história preferida era nenhuma história em particular, mas as situações gerais que ele contava, sem poder definir alguém em particular, sem poder atirar uma data ao ar ou sequer nomear um dos hotéis em definido; eram as histórias da rotina de ascensorista, essas, as que eu, por mim, ouvia até acabar o copo e estar a cair de sono, tendo entretanto já rido e meditado profundamente. Porque não é de descurar a enorme capacidade deste Santos Carlos para contar histórias. Sobretudo nos dias mais chuvosos, em que ficava fechado por mais de duas ou três horas num café e ninguém tinha grande pachorra ou sequer mesmo interesse em o cumprimentar, como sequer ouvir, aí tornava-se uma presença profunda, de voz cava e rouca e olhar perdido num horizonte de balcões e copos e chávenas, nas ruas apinhadas lá fora, no cimento dos passeios, num pormenor de um casaco de alguma pessoa. Aí, deixava as histórias de ascensorista, sacava de um cigarro já muito melindrado pelas vezes sem conta em que entrara e saíra do maço, e punha-o na boca ao dependuro. Depois começava a falar, quem sabe se para o escutarem ou simplesmente para si mesmo. Ia e vinha, de tom e no tempo, ora a perceber-se claramente o dia em que começara a carregar nos botões, por acaso numa velha pensão de 6 andares numa rua por trás da Grande Praça, ora a perder-se a voz e a coerência quando já estava na velha casa de madeira do pai e quando recordava a chinfrineira que fora quando da partida da irmã mais velha para o Canadá. “Ainda lá estaria, mas viva ou morta, que sabia?...” Eu não, certamente, nem mais ninguém no café, que entre o silêncio que a chuva sempre traz de oferta só abanava um pouco a cabeça, solenemente, soerguendo um pouco as sobrancelhas pela tragédia de algumas coisas que a todos acontecem nas suas vidas, e depois logo esquecendo o episódio da vida de um velho ascensorista, para, individualmente, um a um, ficarem todos a meditar nalguma coisa do seu passado.

Creio que, em parte, seria até por isso que muita boa gente já não aguentava ouvir muitas filosofias e velhas memórias de Santos, porque temiam vir a odiá-lo como recuperador de memórias e sofrimentos já há muito recalcados. E sobretudo os donos dos cafés queriam a todo o custo evitar isso, não só porque um café de mágoas era bom para vender bebidas mas não para sempre, só a partir das 2 da madrugada e para meia-dúzia de gatos pingados, mas sobretudo porque eles também tinham as suas histórias, e estar a trabalhar com um constante zumbido na orelha a balouçar e a despertar quezílias e problemas e desilusões, entre outras coisas...

Por vezes era eu quem o afastava, e, finalmente, lá começava ele a contar das histórias gerais, das situações caricatas que sempre aconteciam nos elevadores de “qualquer hotel do país, do mundo e, quiçá, se por esse universo fora houverem estalagens, motéis ou hotéis, de luxo ou mesmo de uma estrela apenas, até aí também muitas destas coisas!”. E lá começava: silêncios comprometedores entre duas ou mais pessoas, confissões de pecados, declarações de amor (e, até, um pedido de casamento), politiquices sujas ditas a meia-voz, reencontros de gente desaparecida, gente perdida à procura do hall com “aquele quadro assim e assado que era o único ponto de referência que tinha como do seu andar certo” e muitas outras.

No fim do dia, ou melhor será dizer pelo princípio da madrugada, Santos Carlos, ex-ascensorista, saía do café mais abatido que um herói sem dever cumprido, e dali todos sabiam que só tinha dois destinos: umas duas ou três casas de mulheres que do seu tempo de hotel sempre recomendava a alguns turistas, e de onde retirava depois uma comissãozita, para além de algumas “carícias” e calor humano de graça; ou então a sua velha casa, um apartamento bem no centro desabitado da cidade, perto de todos os maiores hotéis, onde, um dia ou outro, lá voltava, para dar umas dicas aos rapazes das malas e falar com os novos e desconhecidos tal como com os velhos conhecidos recepcionistas, dizer que agora quase nenhum hotel tinha um tipo decente aos comandos do elevador ou sequer alguém presente, havendo até a ideia já avançada do comando ser feito via uma central ou, ainda pior, por computador! – modernices... aliás, uma completa vergonha, deixarem os clientes abandonados ao seu destino!

Quando as manhãs já acenavam os raios, Santos saía então pela rua e entrava desgraçadamente em casa, exausto.
Mulher?
Filhos?
Família de qualquer espécie?
Um silêncio apenas de todos os que o conhecem.

O pai, bruto, vai-se escutando aqui e ali nalgum delírio de copos. Da irmã só se sabe que foi e não veio do Canadá. E do resto uma mudez parece habitar este homem de andar cansado e que teve uma vida como nenhum outro ser humano, tão para cima como para baixo, ou como diria o próprio em tom sarcástico, “como os meus elevadores, cheio de altos e baixos”. Quem sabe, dizem uns, não terá sido tal inconstância que o terá conduzido à perdição!? Deveria o Estado avaliar a profissão e assistir com um subsídio especial?... Deveria jamais ser permitido trabalhar em tal habitáculo por mais de 5 anos?... ... ...

Do que se conhece ao certo de Santos Carlos vem de há apenas 2 anos, altura em que começou a aparecer pelos mesmos locais que eu e outros frequentamos, sem que alguém ainda conheça ou tenha perspectivas de vir a descobrir uma alma que nos possa elucidar e fazer a sua ligação ao passado que só ele conta.

Inevitavelmente, um dia haverá de carregar pela última vez no botão para fechar a porta, pressionar a ida sem volta para o último andar e premir a saída quem sabe angelical, quem sabe de penitência... Como ele lembra, “até a roupa suja se lava nas caves abaixo da terra”.
Inevitavelmente, um dia haverá de chegar que o café deixará de o ter como personagem assídua e personalidade ora em cima das mesas com um copo de cerveja ora debaixo das saias das empregadas a limpar as lágrimas e a implorar por uma noite dormida com duas mamas leitosas a servir de almofada.

Inevitavelmente, um dia a memória de todos apagar-se-á dele e ficará apenas uma impressão vaga, porque na nossa vida há coisas que, nos últimos dias e suspiros, iremos recordar por mais importantes que esta, dilemas e tragédias, felicidades e alegrias simples, viagens e conquistas, desilusões e melancolias.

E um dia, inevitavelmente, nada mais restará de Carlos Santos, o ex-ascensorista que vagueava pelas ruas e cafés na esperança, digo eu, de vir a encontrar um que ficasse no 3º andar e tivesse à porta um anúncio de “ascensorista precisa-se”.

Hoje, contudo, tem uma velha francesa carregada de jóias falsas, correntes de um amarelo vivo e quase chocante, lenço de seda de cores berrantes em grande contraste com as cores da camisola e da saia comprida, brincos pesados e grossos e anéis com pedras baças, tem esta visita que o diz conhecer de há alguns anos atrás, quando houvera trabalhado algures num recém-inaugurado hotel em nenhures, que logo fechara e a deixara na rua, como a todos... e dali já mais ninguém escutou, por que era já coisa pessoal e mútua dos dois e, diga-se em boa verdade, a dada altura até terrivelmente aborrecida.

Na televisão, contudo, o jogo animava-se com a expulsão do defesa, e a filha do Vasco dono do café acabava de inventar nova profissão urbana: operadora de telecomando; e já primava pela técnica rápida e inteligência, baixando o som durante o jogo para que não se fizesse barulho com as vozes três tons acima, levantando quando havia uma jogada discutível e baixando quando era imperioso que se deixassem as pessoas discutir as coisas, terminando em apoteose com o volume a mais de meio logo após o êxtase de um golo, onde todos berravam de qualquer maneira e se cumprimentavam entre da mesma equipa.
...

Inevitavelmente, um dia...


(escrito em 2001.12.16)

Tuesday, August 16, 2005

Chamam-lhe Roberto

Roberto. E Roberto vem. Traz um banco de madeira. E. Uma almofada. Encapada. A lona preta. E. Um lenço branco. A assoar de vez. Em quando. Em vez. A sacudir trapos. Varrer o chão. Com o sapato. A sola. A sacudir a garganta. A traqueia. O escarro. Abrir a lata. A remexer na pasta. Um dedo de conversa. Basta uma. Uma pergunta. Diga lá... Já está. Roberto não diz. Nada. Só esfrega e puxa. O lustro. A conversa. A paciência. Um lenço. Na testa. Sobre o suor. E escuta. Escuta. Nem que sejam apenas as folhas. Amarelas. Viradas. Jornal de ontem. Não reparou? Desculpe. Não pude ainda... Foi um outro... Esqueceram... São dois euros. A bota. Não é muito. Melhor não encontra. Deixe estar. Eu limpo. Não gosta? Aqui não entra. Nem uma gota. Vá por mim. Roberto. Toda a gente conhece. O Roberto. Graxista não. Engraxador. Até mulheres. Muitas. Doutoras. Sabe quanto custa hoje um par? Claro que sabe... Que pergunta. Eu não sei. Não compro. Dão-mos. Estes pediam. Eram de um deles. Um pedinte. Olhe. Vê? Digo-lhe isto. De um pedinte. Fazia mais que você. Talvez não. Você não. Mas que muita gente. Fazia. Mais. Digo-lhe mais. De uma vez deu-me dois. Dois pares. Dois para mim. Para pagar. Trouxe-me uma saca com mais. Para ele. Quase novos. Para estragar. Veja! Eu! Roberto da escova! A estragar sapatos. Mas faz-se. Tudo. Faz-se. É uma arte. Não parece. Desculpe falar assim tanto. É hoje. Não sei que deu. Diga. Diga. Foi um saco. É verdade. Para estragar. Deu-se um jeito. Faz-se tudo. Ficaram como queria. Velhos. Por dentro não. Por fora. Nada. Só remendos. Bonitos por dentro.

É... É isso. Todos os dias. Vai-se... Sabe que... Pois... é isso, é isso... Tem razão. Não joga nada. Esse também. Não manda. Ora no tempo!... Digo-lhe isto: ...não acha?Roberto!

Sente-se.
Roberto. Escova na mão. Na mesma rua. A engraxar vontades. Polir desejos. Vaidades. Medos. O lustro nos egos. Notícias. Más-línguas. Boas novas. Mentiras. Tretas. A graxa tapa. Tudo.
Ora isso agora...
Faça então três euros. Tiro-lhe meio.

Roberto é assim. Mais um. Tipo. Da rua. Sentado. Agarrado. Aos trapos. À escova. Aos pés. Curvado. És assim. No passeio. Sob o toldo. A fiar o pêlo. Os beiços. Puídos. Sobrepintados. As unhas. Pretas. E as gretas. Escondidas. Sob camadas. Várias camadas. Muitas camadas. Sobre camadas.

Um tacto rude. Áspero.
O pé esmagado. Os dedos. Num vai. Num vem. E vai. De novo. E vem...
Digo-lhe isto: não é chato.
Para fazer bem. Tem de ser assim. Fazer sempre. Todos os dias. Sempre. Fazer o mesmo. Assim é que fica bom. Vê? Perfeito. É isto. Todos os dias. Olhe!
Deixe-me usar castanho. Confia?

Digo-lhe isto: ou mudam. Ou mudamo-nos. Ou mudam-nos. Foi tal qual. Um doutor. No outro dia. Fiquei a pensar. Faz sentido. Pense. Vai ver que. Pense.

Digo-lhe isto: quando morrer, cobrem-me. De graxa. É o meu fato. Lá em baixo não há frio.
Digo-lhe: quando acabar a graxa. Acabo. E que acabe. Vai ver. Todos. Toda a gente. A cuspir em si. Não em si. Em você. Em si. Em si mesmo. Todos. A cuspir-se. Passar lustro na calça. Nas meias. Vou gostar. Vai ver. Para ser diferente.

Digo-lhe: não é a toa que me chamam Roberto.
Olhe. Quando quiser. Estou por aqui. A engraxar sapatos. É só o que faço. Não era bom? Assim? Todos? A fazermos só isso? Uma coisa?
Digo-lhe: era um outro mundo.
Quando quiser. Passe aqui. Pergunte ao Roberto. É assim que todos. Roberto. Me chamam. Roberto.


(escrito em 2004.09.29)

Chamam-lhe “fotógrafo”

cigarrilha na boca
máquina ao peito
um jeito curvado
este e aquele e ainda outro meio feito
mais soberbo
ou mais esquecido
ou até sem jeito
enquanto nas unhas
amareladas
e roídas
um novo concerto
de cliques e tiques
e retiques
e zooms
e esperas
e conversas com quem por ali vagueia na mesma mala de viagens feita de histórias alheias
a sair em fotografias a preto e branco das varinas
dos comícios
dos conflitos
dos desalojados
dos políticos
e dos magros, podres e outros afins assuntos
enquanto
ao fim-de-semana
ou nos outros dias fixos
as cores dos casamentos
e os bailes dos filhos
e os copos dos netos
e dos primos
e dos príncipes
e dos amigos
e de outros parecidos
a dar o rosto ao manifesto
e a lucrar com isso
enquanto o tipo que tem o telefone sempre ligado lá vai de novo uns quantos quilómetros
para uma foto-passe
para uma capa
um catálogo
um choro convulso a encher três páginas
um beijo apanhado ao longe com entrada directa no pontilhismo
e arte na fuga
de uns quantos
ou de um apenas
ou de nada
que não seja rotina
a limpar lentes sujas de pó e cuspo
a vestir roupas largas e a usar mochilas
a calçar prendas
a esfregar a barba
a explicar as histórias verdadeiras a meio com as fantasias
a perder noites
a verter copos depois
a provar jantares
acepipes
boatos
vinhos brancos
e a meter tudo no saco com prazo curto,
a esperar
mas pouco
sob o sumo dos acontecimentos
sem cessar
do mesmo fruto
para os milhares que aí se vão precavendo das viroses do Inverno
das depressões da Primavera
dos sonhos de Verão
das surpresas de Outono
sobre grelhas feitas à pressa
e com novos rostos, novos nomes, novas formas
que já se sabe
entre quem sabe
por onde andaram a fazer subir
as suas ideias
vertigens
prazeres
poderes
e outras coisas que lá vão trazendo dividendos
por entre negócio
e ócio
e prazer,
até
um dia simples
o telefone tocar para um pedido singular
de presença obrigatória
desta vez tão diferente
a pedir-se na voz trémula para repetir
para confirmar
depois do urro interno
do rubor na face
do orgulho de humano solitário após mil maratonas sob chuva e sal e sol no deserto,
do tempo de espera recompensado
agora
finalmente
não para fotografar
mas ser fotografado
no altar
pelos colegas
todos eles
enquanto se lá chega pelo próprio pé e corpo coberto de fato
um sorriso contido
nervoso
as mãos a soerguerem apenas uns centímetros
a distinção
não de aço coberto de ouro
mas de plástico
ora preto
ora cinzento
com retoques de design moderno
e preço alto
ao alto
apontada ao centro
sempre
antes e agora
e depois
sempre
sempre
sempre...
...entre uma cigarrilha na boca
um dedo de conversa
um dia inteiro fechado num canto
numa árvore
num esgoto
num carro
a mijar em garrafas de plástico
para depois
amanhã
às vezes nem isso
ir cobrir passadeiras vermelhas
visitar salas de hotel
morar por aí
conhecer tudo e todos
e no fim
na carteira
no álbum
na memória
apenas uma imagem própria feita de contornos difusos e desmaiadas cores
...como é que eu era mesmo?
ah, sim,
apenas isso,
documentalista
retratista
artista
mágico
mentiroso
verdadeiro
intruso
fiel
confidente
simpático
maldito
e mais isto
e mais aquilo
mas no fundo
tão simplesmente
fotógrafo
homem de passeios
olhares atentos
enquadramentos
jogo rápido
amigos poucos
mil cuidados
e muito sono
só isso
fotógrafo
quem tu vês por trás de algo que te olha
quem tu nunca vês
quem tu sempre procuras ver por inteiro
mas não consegues
como a estrela que aguardas retire os óculos escuros
quem tu só vês pelo que ele vê
o fotógrafo
assim
quase sempre
para ti
para quase todos
talvez até para ele mesmo
a fazer ver como ele viu,
ele que viu o mundo tão de longe e tão de perto
fotógrafo disto e daquilo
um nome na praça
nos jornais e revistas
nas galerias
nos livros pesados
nas enciclopédias
em letras muito pequeninas por baixo
em memórias que se vão desfazendo
até ficar
apenas
no papel
o seu melhor trabalho
nada mais
nada
só isso
apenas isso
ou
quem sabe
com sorte
esse e mais um outro
dois ou três para os mais afortunados
mas no tempo
é isso
essa fotografia
que permanece e que fica
vai ficando
uma palavra muda que se repete e expande cá dentro,
e talvez seja
então
por essa razão
que toda a vida sustém a rotina do muito,
por esse singular centésimo de segundo,
senão para todos
pelo menos para alguns...

e a verdade
então
talvez deambule por aí
nessa frase
de quem disse que um fotógrafo é aquele que apenas sabe procurar a vida inteira fazer
um livro só com uma palavra.


(escrito em 2004.09.10)

Chamam-lhe “Maria, a Porta-Chaves"

Chamam-lhe assim. Porta-chaves.
Pela mão. Um dia. Um cão. Hoje um simples porta-chaves. Frio. Polido. Entre os dedos. Grossos. Mais grossos do que eram. Na mão cheia. Não há pouco tempo.

Há quem diga. Por aí. Que se chamava Maria. Maria. Um nome ausente. Já de si ausente. Neutro. Quase vazio. Maria era assim. Gente. Como tanta gente. Só mais uma. A sair às horas. Parecidas. Matinais. Tardias. Horas tolas. Importantes. Macias. Duras. Obrigatórias horas. Minutos a disfarçarem o tempo igual.

Passeava. Pelo parque. Um jardim. Verde. Escasso. Torto. De relva entornada aos dias. Passeava a passos corridos. A fugir de um cão. Russo. Russo de nome. Pêlo preto. Corpo agigantado. A fugir e a gritar. Russo! Russo! Russo! Via-se e ouvia-se. Também. A rir. Não raras vezes a rir. Russo pela trela. Solto na relva. Comprida. Assim à tarde. Às horas tardias. Do dia. Do final de dia. Claro, o final de dia... O sol a baixar. No passeio uma carripana. Branca. Partida. A estacionar. Um toque atrás. Outro à frente. Uma multidão de putos. No passeio. Mochilas às costas. O etecetera. Mais isto e aquilo. Passageiro. Tudo. Tudo passageiro. Como tudo. E ali no meio. No parque. Maria. A porta-chaves. Não então. Mas agora. Nessa altura apenas Maria. Maria & Russo. Entre corridas. Apanhada. Maria vencida. Por Russo. Por outros? Russo na peugada. Maria corrida. O cão grande e preto de pêlo curto. A relva. Longa. Comprida. Farta. Verde. Muito verde. E Maria. Sobre a relva. Russo vem cá. Russo corre. E Russo corria. Aos olhos de Maria. E outros.

Maria apertava. A trela. As ideias. Algumas músicas. Sonhos. O porta-chaves. No bolso. Nas mãos cheias. Um sorriso. Solto. Russo roçava. Nas pernas. Refugia. Maria olhava. Perdia. Nas horas. No tempo. Pensamentos. Mais pensamentos. De uma casa? Um carro? Amigos. Jantares. Um romance. Fotografias. Um beijo. Um amante. Um homem? Um homem. O homem. E ali à volta. Tantos. Aos volantes. A pé. De fato. Com as crianças. De pasta. Sacos das compras. Bigode. Cabeça rapada. Novos. Jovens. Adolescentes. Bancários. Velhos. Reformados. Negociantes. Perdidos. Emigrantes. Desconhecidos.

E Russo corre.
Maria corre.
Um tipo. Um dia. Quem sabe.
Russo! Vem cá!
E ali perto. Na relva. Um tipo. A olhar. Não é a primeira vez. Houve outras.
Maria olha. Faz que não. Vê. Atira e corre. Com Russo. À frente. Atrás. Passa as mãos. Pelo pêlo. Pela baba. Olhos. Nos olhos. De quem vê. De quem passa. Perto. Um homem casado? Solteiro. Quem sabe... Hoje. Um dia qualquer. Um dia. Hoje? Um dia qualquer. Um dia. Um dia. Quando vier. Um dia. De cada vez. Podia ser este. Este dia. Este homem. Ou outro. Outro qualquer. Como o que se vê. A cada hora. Nos sonhos. Nas ideias. De revista. De memória. De conversa. De cinema. De letras. Músicas. Poemas. Rascunhos nas portas. Blocos de notas. Atrás de uma lista de supermercado...

Desejos.

Maria olha. Mais uma vez. Faz que. Mas olha. Outra vez. Russo! E olha. E o tipo olha. Faz que. Mas olha. Corre. Atrás. A passo. E pára. Assoa. Limpa. Tosse. Quem sabe. Sonha? Também? Maria corre. Atrás. Russo! Russo não pára. Corre. Corre. Corre.

Boa-tarde.
Bom-dia.
Olá.
Está sempre aqui...
Palavras. Muitas. Parecem sempre. Muitas. Quem as recorda? A todas? As primeiras? As primeiras mesmo. Aquelas. Essas. A rasgar. Tesouras. Bombas. Mísseis. Atacantes. Defensivas. Assustadas. Medrosas. Brutais. Toma. Aqui vai. Esta. Outra. Aquela. Agora esta... Sem saber. Sem dar por elas.
Os olhos ficam.
Olhos. Castanhos. Ambos. Cabelos. Pele. Sardas. Lábios. Grossos. Finos.
Mas os olhos. Esses. Ficam.

Quem fala? Quem sabe... Ouve-se. Mas os olhos. Esses. É que falam. Nada importam as bocas. E ele fala. Que diz? Ouviste bem, Maria? Um sorriso. Um convite. O sol põe-se. Vem a noite. Tens um convite. Um jantar. Russo! Vem cá! Sorrisos. Tremores. Por dentro. Por fora. Nas pernas. Joelhos. Dentes brancos. Nervosos. A sorrir. Uma paz. Convulsa. Festiva. Repressão à força. Um aceno. Cabelo atrás da orelha. Troca de números. Russo! Vem aqui!

E aqui vem. Mais um dia. Outro. Mais. Outro. E outro. Ainda. Outro.
Um jantar.
Cinema.
Esplanadas.
Um café.
Uma fotografia.
Uma história.
Outra.
Outra ainda.
O passar do tempo.
O silêncio.
De volta.
Um dia.
Outro.
Teatro.
Farsa.
Um passeio.
De carro. Um belo carro. Comprido. De cor forte. Vermelho. A desviar. Por entre. Rápido. Esquivo. Fugaz. Brilhante. Viçoso.
E o mar...

Ambos. Parados. Sentados. No carro. Vermelho. Os dias atrás. A memória cheia. Conversas. Histórias. Partilha. Uma mão. Pele. Na pele. Com pele. Macia. Lisa. Um aperto. Dentro. Bem dentro. Bem cá dentro. No centro. Quente. Pulsante. Mais quente. E os olhos. Nos olhos. O mar ao longe. Os olhos perto. Saliva extinta. O chão. Fugidio. Num beijo. Seco. Curto. Lábios colados. E os rostos. Inertes. A recuperar. Tontos. Um sorriso. A felicidade. Um instante. Acreditas? Que é para sempre? É para sempre. É sempre. É sempre para sempre. Sempre. Como nunca. Ambos para sempre.

A relva seca. O sol. Alto. Bruto. Longo. Distante. Não foge. Fica. Forte. A cuspir. Raios. Coriscos. O campo evade-se. De gente. De cães. De pássaros. Só lixo. Folhas. Papéis por assinar. Até que o vento. E a sombra. Longos. A tarde. E Russo. E Maria. E o tipo. Na corrida. Curta. O abraço. Vai Russo! Vai!

Jantar. Cinema. Esplanadas. Café. Fotografias. Histórias. O passar do tempo. Silêncio. Um dia. Outro. Teatro. Leitura. Jardins. Hotéis. Pousada. Praia. A cama. A teia. As ligas. As rendas. Fantasias. Prazeres. Farsa. Passeios. Gelados. Restaurantes. Tascas. Copos. Noitadas. Viagens. De carro. Um belo carro. Vermelho. A desviar por entre. E mais horas. E dias. Telefone. Rápido. Medo? Uma espera. Outra. Outra ainda. Outra?

A tarde chega. A sombra parte. A relva. Escura. A noite. Negra.
Russo. Vem.
Em casa. A campainha. O elevador. A porta aberta. Uma história. E mais outra. Outra? Outra... Outra vez? Não. Só outra. A lágrima.
Russo, sai...

A sala. As velas. A colcha. Revistas. Mesa torta. TV ausente. Rosto. Rostos. Nos rostos. Rubros. Húmidos. Desculpas. Justificações. E um pedido. Um desejo? Vem viver comigo. Só assim. Tem de ser. Assim. Só assim. Assim consigo. Só assim...
Russo, rua.

E Russo vai. Maria também. À tarde. Seguinte. Pensativa. Quente. Lágrima fixa. Que fazer? Um homem. O homem. Uma casa nova. Os dois. Só ela. E ele. E a casa. Com quarto. Cama larga. Uma sala. A dois. Uma cozinha. Para os dois. Dois pratos. Dois copos. Duas cadeiras puxadas. Duas almofadas. Duas toalhas. Duas escovas. Duas marcas. A mesma ideia. O mesmo problema. Russo! Russo! Russo! Vai! Corre! Vai! E Russo vai. Corre. Passeia. Fareja. Isto e aquilo. Quase tudo. Quase. Quase tudo. Corre de volta. A trela. Presa. De novo. Ambos de volta.

Maria liga. Telefona. Espera. Aguarda. Angustia. De novo. Tenta. Outra. Outra vez. Pousa. Olha. A casa. As contas. A renda. A vida. O chão. Tijoleira. Paredes claras. Sujas. Russo. Na sala. Ali. Perto. À espera. De nada. E Maria tenta. De novo. Abafa o estômago. A voz responde. Maria fala. Sem forças. Acede. Que sim. Que sim. Os dois. Só os dois. Eu e tu. Nós. Os dois. O Russo... Sai. Hei-de ver. Vou ver. Tenho de ver. Ouve. Escuta. Promete. Enleva. Macia. Mais isto. Aquilo. Um dia. Verás. Um dia. Verás. Todos os dias. Todos. Os dois. Juntos. Bom. Será bom. Muito bom. Tremendamente bom. Como todos. Sim. Como todos. Como os outros. Que passam. Cruzam. Na rua. No parque. Ao volante. A pé. De fato. Com as crianças. De pasta. Sacos das compras. Bigode. Cabeça rapada. Novos. Jovens. Adolescentes. Bancários. Velhos. Reformados. Negociantes. Perdidos. Emigrantes. Desconhecidos. Promessas. Eventos. Quem sabe...

Um dia.
Outro.
Dia.
Tarde.
Noite.
Escura. Lua ausente. Terra fria. E Russo na carpete. De cores. Roídas. Gastas. Velhas. Fios fracos. Farrapos. Uma bola. Ao pé. Massacrada. Buracos. Caretas. Uma máscara. É uma máscara. Uma personagem. Uma visita. Uma gargalhada. Uma tragédia. Três olhos? Uma besta? Uma escultura. Rupestre. Bolestre. Canina. Faminta. Saliva em cascata. E Maria olha. Sorridente. Afaga. Balbucia. Olha. Nos olhos. Olhos nos olhos. Sobrancelhas erguidas. Pesar tardio. E talvez não. Quem sabe... Agora? Não. Não pode. Já não se pode. Não dá. Amanhã vê-se. Amanhã vejo. Onde ficas. Com quem ficas. Tenho de ver. Amanhã. De amanhã não passa. Só eu. Passo. Passo-te. Eu... Não dá. Não posso. Não posso. Não consigo. Não posso. Nunca. Sempre. O mesmo. Não quero.

Um ring.
Dois.
A voz. A mesma. Do corpo. Daquele corpo. Daquele carro. Fugidio. Esquivo. Forte. Vermelho. Comprido. Um soluço. Um pedido. Os três. Só os três. Juntos. Silêncio. Insisto. Os três. Silêncio. Insisto de novo. E tu? Que dizes. Silêncio. Suspiro. Não dá. Não pode ser. A escolha é tua. Não dá...

O dia nasce. A tarde cresce. A relva finda. A máquina limpa. Outra que vem e aspira. A carrinha parte. A luz fraca lambe. A erva. A relva. A terra. Um malmequer. Uma caneca partida. Descoberta. E um poio. E uma prece. Numa bola. De papel. Quadriculado. Aprisionada. Riscada. De lado. Junto ao furo. Perdeu-se? Arrependeu-se? Mais um soluço. Russo! Corre! Vai lá! Corre! Corre, Russo! Deixa... A bola salta. A máscara. Oval. Massacrada. De novo. Irrequieta. Viril. Possante. Vibrante. Sem relva longa. Sem travessas. Sem barreiras. A brilhar. Na pouca luz. A descer. Veloz. E Russo atrás. Maria ao longe. Distante. Desatenta. Russo a descer. Maria a ver. Agora. Só agora. Agora. Só. A bola. Alta. A embater. Rebater. Ultrapassar. Por entre. Por cima. Por baixo. E Russo. A correr. Mais perto. Mais alto. Por entre. Por cima. Por baixo. A estrada perto. Já perto. Maria ao longe. Russo mais perto. A bola tosca. A parar. Devagar. Oval. Avanço curto. Avanço maior. Pelo passeio. Cimento. Torto. Aberto e tapado. Vezes sem conta. Irregular. Mais um centímetro. Russo mais perto. A bola a parar. Maria. De longe. A correr. Atrás. De Russo. Pêlo preto. Curto. Patas fortes. A parar. Focinho comprido. Boca aberta. Caninos brilhantes. Saliva a escorrer. Bola à frente. A descer. A guia. O passeio. Uma sarjeta. Por cima. O alcatrão. A terra encostada. Um metro só. Apenas isso. Um metro. E Russo atrás. Da bola. A morder. A mordê-la. Maria ao longe. A gritar. Russo aqui! Russo aqui! Volta! E nisto um carro. Veloz. Vermelho. Sem bem se ver. A bater. De frente. Em Russo. A bola a rolar. De novo. Maria. Ao longe. Em silêncio.


A estrada negra. Manchada. De negro. De óleo. De sangue. Vermelho. Uma tontura. Um grito. Um susto. Um desalento. Um tanque cheio. Um dilúvio seco. Nada a sair. Sem sair. Sem conseguir sair. As pernas. Fracas. Passo a passo. Sem crer. Tudo assim. Sem crer. Sempre. Como nunca.
A trela na mão.
As chaves na outra.
A noite a cair baixinho sem um só pio que diga alguma coisa ou um conforto de um corpo forte a segurar outro corpo entre as chamas pretas de uma perda igual a outras e tantas outras todos os dias iguais a outros e tantos outros...

Um dia.

Outro.

Mais um. Mais um dia. Mais um. Mais um dia. Mais um. Mais um dia. Um dia. Um dia. Um dia. Um dia. Um dia. O mesmo. O mesmo dia. Dia. Dia. Dia. O mesmo dia. Mais um. Mais um. Mais um. Mais u...

Sol. Tarde. Chuva. Noite. Lua. Sossego. Janelas. Lâmpadas. Acesas. Gargalhadas. Por cima. No andar de cima. Do lado. Uma criança que chora. A noite lá fora. TV’s acesas. Camas rangidas. Um edredão de penas. Sem uma. Sem mais uma. Mais uma. Sem uma. Menos uma. Menos uma. Menos uma. Menos uma.

Quem é aquela?
Chamam-lhe Maria. A porta-chaves. Ia casar. Viver com outro. Ficou sozinha.

Quem é aquela?
Aquela ali?
Aquela. Na relva.
Chamam-lhe a porta-chaves. Trazia trela. Um cão. Até marido. Um dia não sei. Ficou sem nada. Vem para aqui. Assim. Só a pé. Sozinha. A mexer nas chaves. Entre os dedos. Grossos. Mais grossos do que eram. Na mão cheia.

Quem é aquela?
Quem é você?
Sou novo. Por aqui. Cheguei agora. Há dias.
Aquela já é velha. Chama-se Maria.
Maria?
Ou Porta-Chaves.
Porquê?
Morreu-lhe o cão. Com quem vivia.
Anda triste...
Pudera. Era o cão dela.
Como era?
Quem?
O cão. Dela.
Era grande. Um grande cão. Grande e preto.
E agora?
Agora o quê?
Com quem anda?
Não vê!? Anda sozinha. Sempre. Assim. Com aquelas chaves. Nas mãos. Mais nada.

Um passo à frente. Outro ainda. Na mão a trela. A mão firme. Masculina. Pêlos nas costas. Da mão. Larga. Mão que assina. Mão que escreve. Mão que pensa. Mão que chora. Ri. Amargura. Aguarda. Avança. Hesita. Risca. Rasga. Rompe. Ruge. Reza. Prega. Recomeça. Mas mais. Muito mais. Mais que isso. Crê. Puxa. Puxa para si. Kassy. Anda! Anda, Kassy. Vamos ali. Vamos.
A relva comprida. Os passos fofos. O som. Sem som. O passo. Sem eco. Só marca. E ele assim. Passo a passo. Mais um passo. Para Maria. A Porta-Chaves. Que teve. Isto. E aquilo. Um dia. E não teve nada. Ou quase. Teve. E não teve. Maria assim. Ou Menos. À espera. Quem sabe. E daí. Quem sabe...

Kassy, senta. Boa-tarde. Olá... Está sempre aqui?
E Maria sorri. Olha-o. Olha. Roda as chaves. No porta-chaves. Pára. Mexe o pé. Não responde. Diz. Nada. Mete as mãos. E as chaves. Nos bolsos. Parada. E fica. Ali. Ali fica. E ele insiste. Mas Maria. Assim. Como é. Agora. Diz. Nada.
Ele sorri. Acena. Cumprimenta. Despede-se. Anda, Kassy. Anda...

Ela chama-se Maria. Chamam-lhe a porta-chaves. Ia casar. Viver com outro. Ficou sozinha.
Ele vai-se embora.


(escrito em 2004.09.20)

Thursday, August 11, 2005

Chamavam-lhe “C.M."

Tive um amigo a quem chamávamos C.M.
Só a malta de Ermesinde o conhece.
Desde que saí de lá, nunca mais ouvi nada sobre o C.M. Chamávamos-lhe CM porque só tinha 2 cm. Mas por causa da situação minorca dele tínhamos alguns complexos em lhe alcunhar de centímetro. Então usámos as mesmas iniciais “cm” de centímetro e do jornal Correio da Manhã para o chamarmos de “CêEme”. Era mais subtil. Só para disfarçar. O CM não levava a mal e a nós simplificava-nos o trabalho.

Com o CM havia sempre episódios de bradar aos céus!
Uma vez andou desaparecido durante 1 semana. Os pais dele já estavam a passar-se dos carretos. Ainda chegaram a ir aos telejornais, mas ninguém acreditou neles e no facto verídico de terem um filho minorca com apenas 2 cm. Felizmente, lá acabaram por encontrar o CM. Estava enfiado no meio dos pitons da chuteira do Albino. Tínhamos ido jogar futebol uma semana atrás e no meio de um lance confuso o CM enrolou-se todo e o Albino acabou por pisá-lo. Também, diga-se de passagem, o CM não estava na equipa senão por misericórdia. Nós bem o avisámos. Mas que se pode dizer a um gajo que insiste que pode marcar golos de cabeça...

Certa vez chegou-se ao pé de nós com ares de suspiro:
-Arranjei uma namorada.

Pelos vistos a fulana era de um bairro de ali perto. Nenhum de nós, do grupo, a tinha visto mais gorda. Ou mais feia. Quando o CM mostrou a foto ninguém piou. Era óbvio que a gaja só se tinha metido com ele para dar nas vistas e andar nas bocas do mundo. Nenhum conselho ou advertência saiu da boca de uma só cara borbulhenta naquela hora. Isto de gajos enrolados com gajas é mesmo assim, cada um que se cuide e aprenda com os próprios erros. Porque quando um gajo anda apaixonado, anda apaixonado. Ou dizendo como o Larva sempre dizia: quando um tipo tem de esvaziá-los, qualquer tronco é macio...

Aquilo não durou muito. É claro. Nem podia. A fulana deu-lhe com os pés ainda nem o CM tinha adquirido poderes para tocar em todos os pontos sagrados, nevrálgicos e estimulantes. Pelo menos de livre vontade e sem para isso ter de passar privações e humilhações.
Andou por baixo durante meses. O que não deixa de ser caricato, para um tipo com apenas dois centímetros de altura...

Estava o CM a começar a recuperar quando eu me pirei do bairro. O meu pai estava farto de subúrbios semeados de apartamentos T2 e T3 com menos de 80 metros quadrados e fomos ainda para mais longe, onde as casas eram maiores e mais baratas. Ainda cheguei a encontrar depois alguma dessa malta, mas sinais do CM, nem vê-los.

Há quem desate a rir quando conto histórias do CM, mas não me importo grandemente. Foi uma dessas amizades de infância imensas, das que ficam para a memória. Lembrar-me dos tempos em que íamos todos de férias e o CM não pagava nem viagem nem quarto porque o metíamos no bolso, lembrar que o gajo se metia na casa-de-banho das gajas da colónia de férias e nos vinha trazer as cuecas que sacava de surra, as notas que juntávamos à barda à conta das vezes que o gajo se enfiava nos escritórios a limpar cheques-restaurante ou, ainda, de como o CM se passava aos pontapés a quem o chamava de Estrunfe...

Há muitas coisas, e quase todas elas muito boas, que guardo desses tempos. Do CM. Da restante malta. E de como foi duro para aquele tipo minorca encontrar a primeira paixão desoladora... É daquelas lições que quase todos temos. Mas poucos as temos à escala que teve o CM. Aliás, viver de tal forma desequiparada a tudo o que nos rodeia só pode ser obra de um grande homem, que ultrapassa de sobremaneira não só as dificuldades mas o seu tempo igualmente. E o CM era, pelo menos até ao tempo em que o conheci, um grande homem. Talvez por isso recorde tudo isto de forma nostálgica e incrédula. E não deixa de ser irónico, afinal, ver na manchete do Correio da Manhã de hoje a notícia "Minorca evade-se da prisão de Caxias por entre as grades".

Grande CM!
Nunca ninguém apanhou aquele gajo.


(escrito em 2004.09.02)

Friday, January 14, 2005

Chamam-lhe "amarelo"

o título de cima foi só para te chamar a atenção.
se estás aqui a ler esta parvónia, deu resultado.
ainda bem.
a sério.
olha que as linhas deste compêndio até nem são más de todo.
podem não te ajudar a resolver os dilemas existenciais ou sequer fazer decidir sobre o aborto, mas são fixes, são do melhor que há no mercado, de certa forma uma 'piéce de resistance' com garantia de evitar maus agoiros e promover o bom ócio.
seja como for, o amarelo é o tema, e aqui está porque às vezes tudo descamba!
o tema!
porque tem de haver um tema?
porque sim.
foi, pelo menos, o que me disse o Fintas.
o Fintas é um puto que eu conheço. é um puto baril. um bocado desajeitado à bola; mas claro que a gente não lhe diz isso assim de boca; mandamo-lo para a baliza e ele anda todo satisfeito a levar com os balázios do Magala.
o Magala tem 14 anos mas já parece que tem 20; deve sofrer de gigantismo; disso e de embrutice aguda; diz sempre que faz anos a uma sexta; já lhe tentei explicar que o que conta é a data, não o dia da semana em que nasceu, mas ele não entende mesmo...
seja como for,
posto isto,
ora bem,
de qualquer modo,
a.k.a. "inversão abrupta do tema de conversa",
o que conta mesmo é que hoje vi um carro amarelo canário.
é raro.
acho que ainda só tinha visto três na vida.
este era um Lotus Elan.
o que explica muita coisa...
a maior parte dos Lótus Elan saíram amarelos.
este também.
ia um gajo do outro lado a rua e pôs-se logo a gritar: amarelo cabrão f-d-p****!
fiquei a pensar naquilo...
há gente mesmo curiosa.
devem trabalhar numa fábrica de tintas, ou coisa parecida.
sabem de cor todos os nomes das cores.
nesse campo só sei que os cortinados lá de casa são branco marfim.
já é alguma coisa.


(escrito em 2004.09.01)


Wednesday, January 12, 2005

Chamam-me Rui Jorge dos Santos Carvalho

Nem é como eu me chamo. Ou melhor, não é como eu me tenho ditamente visto sob entidade consciente; não é a minha imagem alfabética e verbalmente sígnica, diriam os semiologistas ou sistémicos... não me lembro qual deles o mais correcto aqui para o caso.

Mas, pelos vistos, o que aqui importa neste tempo (e concomitantemente nesta sociedade) é o valor e a sentença ditados pela maioria, ou pela média. Seja como for, nós mesmos nunca temos a palavra.

Por muito que eu fale e reclame, por muito que me possa orgulhar ou me seja indiferente, é um facto inegável de que o nome inscrito no título é mesmo o que vem no meu B.I. bege pálido, selado a branco e revestido a plástico duro, tal e qual, com a minha caligrafia na assinatura, sob a foto, na frente, e escrito à máquina no verso. A legibilidade do segundo caso é evidentemente preferível por todos os que consultam o documento.

O "dos" no meio do nome custou-me, certa vez, um regresso a casa, desde o centro da cidade, e novo retorno à baixa, no dia seguinte. Tudo porque ao preencher uns papéis para o serviço militar mo não tinham posto. Pediram desculpa, mas disseram que isso fazia muita diferença. Aliás, toda a diferença. E não aceitaram os papéis. Subiram ainda o sobrolho, torceram um pouco os lábios e de olhar afiado revistaram-me perscrutadoramente e afincadamente dos pés à cabeça. Felizmente nem estava muito mal vestido. "Era absolutamente necessário que eu preenchesse novamente os papéis". Finalmente soltaram todas as amarras que esticavam a tensão dos músculos, baixaram de novo o olhar sobre os papéis pousados na mesa e exprimiram apenas a verificação de um problema evidente à sua frente, um problema bicudo e quase irresolúvel, um caso difícil de ultrapassar a verificar-se a minha insistência negativa à proposta, definitivamente caótico se executada a minha acção de avançar com o documento tal como se apresentava, "ainda mais sabendo eu, em plena consciência e esclarecimento da situação e dos factos, do que se estava ali a passar".
E nisto lá fui saindo, quando se preparavam para fechar.

Voltei no dia seguinte com novos papéis preenchidos e o "dos" carregado em três passagens de caneta, para que a quem fosse tratar daquilo não lhe passasse despercebido à vista. No fim, pelo menos, recebi de volta um sorriso simpático pela minha cumplicidade e subserviência prestada. Achei que aquilo tinha sido uma qualquer prova a que eu acabara de passar com distinção, e fui-me embora...

Contudo, nem sempre sou estas 25 letras... ou melhor, estas 25 letras e 4 espaços por esta ordem. Por vezes gosto de baralhar tudo, mesmo comigo, tal como acontece com os papéis que vou deixando espalhados sobre a secretária. Assim igualmente com o meu nome: d-R-v-g-a-r-o-s-J-o-s-d... Bem vistas as coisas de longe, o caos gerado acaba também por gerar alguma reflexão filosófica de quem não tem mais nada de interessante para fazer. Mas basta ir buscar o pano do pó para reorganizar tudo pela ordem convencionalista das coisas, tal como faço com o meu quarto, de 15 em 15 dias, ou quando calha.

O que não deixa de ser uma ideia curiosa é esta de arranjarmos o nosso nome tal como arranjamos o nosso quarto, tal como mudamos a água ao aquário ou cuidamos de uma planta ou lavamos o nosso cão...

Contudo, por vezes é-me permitido deixar o campo das letras e ter o privilégio de possuir um número só meu. Sou então o 102689969. Tenho outros números, mas dizem-me que este é o mais importante. Chamam-lhe "número de contribuinte". E creio que uma grande parte das pessoas não o nota, mas a designação ecuménica, desde logo, presume que vamos contribuir com alguma coisa. Talvez seja por isso que o tornem indispensável para qualquer coisa, nos dias de hoje. Pelo menos todas as instituições bancárias e repartições do Estado o pedem.
Eles lá sabem.

Ainda assim, eu gostava de ver o dossier assinado pelas partes que elaboraram e autorizaram e selaram o aval do cartão. Mas o que eu gostava mesmo era de meter conversa com a rapariga da frente. Pergunto-me qual seria a reacção dela se eu neste momento simplesmente desaparecesse.
O caos planetário?
O país com os noticiários à minha procura?
E tudo desvairado como uma mosca em piruetas, até a miúda deixar a barra de chocolate e perguntar à senhora do lado "De que estão a falar?" ou "Que se passa?".
E o que é que a senhora lhe poderia dizer!?
-Olhe, parece que desapareceu o 102689969.
Ou então:
-Olhe, parece que ninguém sabe onde pára o Rui Jorge dos Santos Carvalho.

Mas o mais curioso é que se eu fizesse desaparecer toda e qualquer nomenclatura e referência simbólica minhas, como saberiam quem procurar!? E se apagasse mesmo de todos os registos fotográficos a memória do meu rosto?!?
-Boa noite. Desapareceu, hoje, alguém. As entidades envolvidas na busca do indivíduo ainda não sabem quem ele é, apenas que desapareceu. Os pais todos do país choram e estão em pânico, porque ninguém sabe se se trata de um filho seu. Para além dos pais, a generalidade dos portugueses aguarda com impaciência, e sem por de lado o inevitável choque, de saber de quem se trata; se alguém das suas famílias ou grupo de amigos, ou simplesmente um desconhecido. A Polícia de Segurança Pública, a Guarda Nacional Republicana e, até mesmo, já um elemento da Secreta Portuguesa, vieram afirmar que, em princípio, não se deverá tratar de nenhum indivíduo perigoso. As empresas, nacionais e estrangeiras, lançaram o alerta, e dá-se agora uma corrida contra o tempo para verificar todos os relatórios de presenças dos últimos dias, na busca de alguma ausência, ainda que tal tarefa de pouco valha, pois todo e qualquer registo da pessoa desaparecida teve esse mesmo destino, e procurar uma coisa que não se sabe o que é torna-se, portanto, uma tarefa inglória e destinada ao fracasso logo à partida. A certeza, essa, é só uma: alguém desapareceu, e não fui eu.

Seria engraçado, para aumentar o tom caótico e estapafúrdio da situação, se nesse preciso instante a electricidade fosse abaixo e a emissão desaparecesse. Mais ainda se fosse noite e toda a gente ficasse às escuras. Creio que, nas suas casas, abraçados pelas quatro paredes de suas salas ou quartos, os telespectadores ou radiouvintes ficariam primeiro estarrecidos num sufoco abismal e apavorado, posteriormente rebentando num pranto alongado e histérico, berreiro digno de ser registado em banda magnética. O digno sangue-frio que se dispusesse a ir buscar, calmamente, o aparelho gravador ao seu armário, e que gravasse em qualidade estéreo o grito geral, à medida que fosse passeando pelos corredores dos prédios e até pelas ruas, poderia depois de todo o alarido lançar um álbum, quem sabe, intitulado "Crying for Disappearance Suite in Si Minor". Claro que depois, como faixas extra, em oferta aos fãs, estariam a "Improviso em Martelo Pneumático" ou mesmo a "Sonata em Telemóvel Sem Bateria", esta última uma faixa experimentalista onde um imenso silêncio poderia ser ouvido durante alguns escassos segundos. Quanto ao sucesso da primeira faixa extra, ele em muito dependeria do tipo de terreno (perdão, palco) em que (onde) se executaria a obra (perdão novamente: peça), bem como a marca do martelo (dito instrumento) e até da força do seu operador (artista).
Quanto a mim...
...quanto a mim...
mim
Uma palavra capicua que em português é excelente para o que designa, porque não cessa um constante vai e vem que, profundamente e fundamentalmente, é isso mesmo que simboliza: uma pergunta-resposta, mas sem resposta, a responder-se com perguntas, sem fim: <-> m <-> i <-> m <-> i <-> m <-> i (...)
mim
E daí?
Será que o país e o Estado e as empresas ficariam mais descansados depois de descobrirem o meu nome?
Certamente ficariam.

E ficaria mais esclarecida esta miúda com a sua barra de chocolate já no fim?
Talvez um bocadinho; quase como o resto da barra que vai agora termin... não, guardou-a no resto do plástico; ou já estava enjoada; ou talvez seja um ritual...

E nisto, acredito veementemente e finalmente que pelo menos alguma coisa significaria se a senhora do lado lhe divulgasse que o rapaz (dica X) desaparecido se considerava um discípulo de Sócrates quanto à sua nacionalidade (dicas Y e Z) e que gostava de rosas e margaridas (dicas V e W) e que o azul era a sua cor preferida (dica R), sendo que uma das suas paixões era viajar, outra ouvir música e outras ir ao cinema, estar com os amigos, conversar sobre tudo menos coscuvilhices, ler e escrever (dicas A, F, D, P, Q, K e S). Seria uma combinação que elegeria da massa amorfa da sociedade tanto esclarecimento quanto dizer que o meu nome era Rui Jorge dos Santos Carvalho e o meu número de contribuinte 102689969. Contudo sempre daria um esboço mais simpático e imaginativo, obtendo mais pontos pelo romantismo despertado e pelo tempo ocupado a traçar um retrato-robot. Ou seja, sempre seria mais qualquer coisa, e alguma coisa mais interessante, ou quem sabe do total com algumas coisas interessantes e certas coisas desinteressantes, sendo outras coisas completamente dispensáveis e trocáveis por qualquer outra coisa comum com as coisas dela. Resumidamente: daria para emitir uma opinião, nem que escassa e mal baseada, mas sempre uma opinião.

Mas o que importa retirar desta minha odisseia será, talvez (perdoe-se-me o abuso convencido e chato) uma coisa: que eu me chamo o nome que me deram, o nome que todos os dias me lembram, o nome que eu sou obrigado a dar para não gerar confusão nos outros e até em mim; mas ninguém me chama ainda o nome que eu gostaria, e a razão, essa, é simples, difícil ou impossível de resolvê-la eu por mim mesmo, e contudo leve, serena na imagem e situação, pois que é apenas porque a cama está vazia e, também, por outro lado, as gavetas cheias.
Contraditório?
Confuso.
Talvez... mas eu digo que nem por isso, só à primeira vista. E quem sabe, talvez seja mesmo por ela que as duas situações vão tendo pouso fixo...
Nisto termino e assino:
-o próprio.

(escrito em 2002.04.27)

Chamam-me "nada"

Eu já os ouvi. Por aí. dizem-me bom dia e boa-tarde e boa-noie e olá. E. Dizem mais. Que me importam. O Xavier já por várias vezes que me vem com a mesma história. Fernando, estes são... Não quero saber! Já lhe disse tantas vezes. Não quero saber. Para mim são números. É tudo números. Não foi de outra maneira que cheguei aqui. É um cargo importante. Director. Director da contabilidade desta empresa. Fernando Negrão. Director. Está lá escrito. E quero lá saber que me chamem os nomes que certamente me chamam. Sou o que for preciso para que as coisas corram bem. Chamam-me um número também. Chamam-me zero. Menos que zero. Nada. Inexistente. Pois então que saibam. O que lhes aconteceu. Vem do nada. Deste nada. À merda. Todos. Tudo gente mesquinha. Quem precisa desta gente.

Já os vi para aí a apontar. Apontam quando chego. Só porque tenho um Porsche. Eu não ando para aí a gastar dinheiro em casas nos subúrbios. Ou em creches. Ou em férias no Algarve ou no sul de Espanha. Eles que se marimbem se eu vivo com a minha mãe. Quem têm com isso. À merda. Digo-o. A todos. Quem quiser ouvir. Mas não eles. Já disse ao Teixeira que me mando aos ares quando me vem espicaçar com aquelas tretas de aproximar os trabalhadores... Às favas com os cursos na América. Tretas. Uma empresa funciona é com atitude. Maricas. Andam-se a comer uns aos outros e já não se pode fazer nada. Antigamente havia maneiras. Hoje torna-se difícil. Há quem faça de tudo para subir.

Meto a gravata com o nó apertado.
Gosto assim.
As camisas brancas.
Sou alto.
Gosto de mim.
Gosto de pentear-me assim.
De puxar e realçar a testa.
Sou egocêntrico.
Sou mesmo.
Aprendi a gostar de quem sou. Acho que não aprendi, aliás. Já sou assim. Assim. É assim mesmo. Não há cá naturezas a mudar. Cada um é como é. E as balelas de reconversões de quadro de pessoal!!... Mas alguém que andava na DRH vai-me agora fazer o quê para o Marketing. Eu não dou dinheiro a merdas dessas. Querem gastar dinheiro. Então que gastem com o que deve ser. Com profissionais como deve ser. E há por aí muito bom estudante. Saem das faculdades e sabem o que fazer. Não reclamam porque lhes pedem mais horas para fazer as coisas. Todos uma cambada de Cubistas. Passam a vida a deformar a realidade. Todos uns líricos. E aquele merdas do Teixeira... eu já o percebi há muito tempo. Sei muito bem. Ele e o outro...
Mãe.
Sabes...
Mãe...
Sim.
Podia falar com o Francisco Palmela. Ele...
Sim...
Eu sei, mãe...
Ela tem razão... Não vale a pena. Um dia destes damos um jantar cá em casa ao Castro de Melo. Ele já sabe como é. Falamos e a coisa resolve-se. Mais ano menos ano.

Escusam de me olhar.
Porque insistem em dizer-me bom-dia!?
Já sabem que não respondo!
Irritação logo de manhã.
Os genes deram-me um metro e noventa de altura mas mesmo assim esta gentinha continua a querer chegar-me às suíças. Cambada...

Luísa, passe-me o Sintra Ferreira e diga ao Vasco Preto para me trazer o relatório semestral de contas. Isso rápido. Mande entregar também uns cafés.

Todos os dias a mesma porcaria. Lá estão. Outra. E outra. Outra vez a chegar-me cartas de... Chiça! Merdas de reclamações. Já deviam saber. Ainda há gente. O que é que lhes alimenta a esperança!? Deve ser o desespero. Gente pobre. Que miséria de gente. Cambada de abutres. É o que são. A gente dá-lhes um por cento. Reclamam logo que mereciam três. E ainda se. Então não podem combinar? Receber dois? É o que eu digo. O melhor é não lhes dar. Nada. É para ver se se acalmam um bocado. Baixam a bola.

Já vim a saber. Não é casado. Isso explica tudo. Ele deve ser...
Deve ser...
Deve ser...
Deve ser...
Ele deve ser...
Põem-se para ali com conjecturas e devem seres...
Deve ser...
Sabem eles o quê?
A maior parte desta gente nem numa faculdade meteu os calcantes, quanto mais as botas sujas e de napa com que andam todos os dias!
Gentinha...

Vou propor ao Sr. Administrador que façamos um corte nas despesas de formação. Para quê? Já é o terceiro ano. Acho que esta merda é só para os directores andarem para aí. A limparem. As botas. A uns quantos! E ainda virem receber por fora. Aposto que se fizéssemos uns testes... A maior parte dos funcionários não aprendeu nada. E se aprendeu, já esqueceu. Cambada. Incompetentes. Safam-se trinta por cento. Ou menos. Ainda. Hei-de provar isto. Esta empresa e a maioria. Fazia-se com trinta por cento. As pessoas certas. Nada desta corja. Cambada de ovelhas preguiçosas...

Tenebroso. Maquiavélico.
Ele deve ser...
Eles sabem lá.
Amanhã mando-me para a Quinta das Vidigueiras.
Eles que fiquem com os subúrbios.
Só pedia que se calassem.
Até recomendava um aumento das despesas com pessoal.
Se se calassem.
Se parassem.
De uma vez por todas!
Se parassem de uma vez por todas de me dizer bom-dia.
A merda do bom-dia!
Baixem a cara. Olhem os atacadores das sapatilhas. Metam-se nas vossas vidinhas de miséria. Piquem o ponto. Trabalhem as horas a horas. Ofereçam cafezinhos. Entre vocês. Felizmente eu ainda tenho boquinha para os mandar vir.
Agora, com licença.


(escrito em 2004.10.21)

Thursday, January 06, 2005

Chamam-lhes "meninas"

Mulher. Mulher? Mulher. Menina. Todas meninas de rua. Putas. Magras algumas. Gordas. Coxas grossas nuas. Calções brancos de bainha para fora. Gangas. Um casaco de pele falsa. Nas ruas. Ao frio. Encostadas a um poste. Sob o telhado de vidro de uma paragem de autocarro. Amparadas umas às outras. Em fogueira. Em conversa. A sós numa esquina. Juntas à espera entre ‘chiclets’ e cigarros e experiências trocadas. Botas altas. Sandálias de tiras. Tops de alças. Camisolas encolhidas na máquina. Soutien de renda e mais nada. Boca vermelha. Boca rosa. Boca brilhante como os pneus de um carro novo no stand; não como os carros que param. Cabelos compridos à solta. Cabelos lisos curtos. Loiras. Morenas. Sotaque daqui e dali. Portuguesas. Estrangeiras.

Mulheres, meninas e putas com gordura para todos os gostos e dietas, vestidas cada uma com sua própria e única fantasia diária de pé pelas ruas, em conversa ampla ou em surdina, sempre à espera, cabelos ajeitados com dois dedos para o lado, olhos desviados por mais de dois segundos de contacto, silêncio.

Há conversa? Quanto levas? Que é que fazes?...
Nem uma palavra do batom carregado de vermelho.
Julgas que és mais que as outras!? Puta convencida! Levas onde levam todas!
Mais uma hora que passa. Às vezes aviam-se dois de uma assentada em 15 minutos. O dobro para sua despesa. Depende da hora, da época, da zona...
Os semáforos carregam-se de vermelho. Alongam-se. Os olhos.
Fábricas de sonhos.
Produção industrial.
Foi-se o luxo da imaginação.
Carne por carne.
A solidão o mal do sec. XXI.
...

E tu?
Ela volta-se. Olha.
Quanto é? Quanto levas? O que fazes? Onde? Depende. 5. 50. 35. Ou mais? Tudo? Quente. Tua. Onde quiseres. Não quero. Não queres. Vai-te embora. Esquisita. Esquisito. Decepção. De longe parecia. Nem aqui.

Até as putas já se dão ao luxo de escolher trabalho. Pagam-lhes demais. Têm o nome. Audácia. Experiência. A mais velha do mundo. Onde têm a carta de referências? Não há escolas? Nos bordéis pagam para lhes ensinar as várias maneiras? Precisam de cobaias para praticar?
Há mais por aí.

Metes-me medo...
E contudo é Inverno.

Uma brisa varre rente ao chão. Cimento gasto e gretado. Corta as pernas até à micro-saia. Rasga os lábios encapados de batom. Enruga a pele coberta de base. Chora os olhos. Choram os olhos. Um poste de luz é um abrigo.
Linda menina!
Ela desvia.
Ele passa e desaparece com a luz verde.
Mais à frente
-que fazem aqui a esta hora?
-esperamos o autocarro, sr. agente!
Riem-se todas. Sempre o mesmo. Logo ele passa. Já conhece a história. Dizem que faz parte dela.
Risinhos. Escárnio. Cuspo. Garrafas atiradas de passagem rápida e vidros baixados. Gritos. Urros. Bebedeiras. Ares de fastio. Ares de inveja. Ares cúmplices. Fantasias. Tudo depende da hora; há fases. A época também. Mas é mais o dia. E a zona. A acabar distribuem-se sempre pastilhas a dobrar. Morango preferidas. Mentol também.
Música nas alturas e alguém a lembrar “La Puta Cabra! La Puta Cabra!”
Elas percebem. São putas. Não são burras.
-Cabrões filhos-da-puta!
-A minha mãe não te conhecia!
-Mete-lho acima para ver se ela se lembra, cabrão de merda!!
-Suas puutas!!
Cada um faz pela vida.
Cada um faz a sua vida.
Cada um se faz à vida.
Cada uma faz a vida.
Faz-me agora.
É uma de 100.
Está bem! Despacha-te, minha puta! Isso! Assim... Assim... Põe-te agora em cima! Toma mais 50! Vá, anda, despacha-te lindinha!
Por trás, jóia! Duas de 20. Não dá, amor? São das antigas, querida! Ah, agora já cantas! E também falas ao microfone? Isto serve-te, não serve? Já sei que não podes falar...
...

Nem todo o que chega sai com companhia.
-Rai’s te fodam, grande puta!
-Vai meter pilhas dentro, filhinho!
-Ainda hás-de vir chuchá-la de graça!
-Põe-t’andar, cabrão! Vai meter o caralho na cona da tua mãe!
-Vim agora da tua! Ela é que te recomendou!
-Circula, cabrão! Vai bater uma!
-Vai tu circular essa cona p’rá piça do teu pai, grande vaca!
Arranca.
Acaba.
Recomeça.
Risada.
Rotina.
Noite e dia.
O silêncio mama da noite. Prédios de olhos fechados. A lua muda. Uma ou outra sirene relampeja mas nem discute porque nem pára. Até à noite o tempo escasseia. Até à noite que vem. Até de dia. Até amanhã.

Mas agora ainda dura. Pela mata ou pela rua. Esquisita? Desesperada? Ainda nula? Dependência? Ninfomaníaca?

Dá-me uma enquanto metes uma dose comigo. Pagas? Está incluído? E se houver outras? E se houver outros?... Por cima. De lado. Em pé. Deitada. A cavalo. Engoles? Ver-te com outra. Vais com dois? Metes duas na mesma? Mete-a toda na boca? Chupa. Lambe-a toda. Aqui no carro. Em minha casa ou na tua. Em frente a um espelho. Despe-te. Bate-me uma. Veste isto. Salta! Levas estaladas? Bate-me com força. Meia-hora. Chibatadas? Dás ou levas? Fode-me até ficares toda fodida! Pedrada! Dormes lá? Para um filme. Deixas-te ser gravada? Fotografada? Lambida? Mijada? Faz um strip. Mais 3 notas. No cu? Sem preservativo. Sem preservativo? Com preservativo. Aguentas mais no pito? Ao mesmo tempo no cu e na rata! Vem-te! Vem-te agora! Geme. Grita. Quem manda? Diz quem manda! Puta! Agora em cima da mesa. Agora em cima da banca. Um 69! Deita-te na cama! Estica-te no carro. Mete as mudanças dentro do pito! Uma rapidinha aqui na mata. Põe-te lá fora!
Morta.

Encontrada morta, ontem, “menina da rua”, vista pela última vez na zona da praia da desgraça, junto ao bairro fácil e perigoso, pelas 2 da madrugada.
Chama-lhes meninas... Sabem mais que a avó da humanidade inteira!
Putas!
Coitada...
Drogada.
Esporrada toda ela.
Porrada nela enquanto levou nela. Durou quase duas horas.
Autópsia: violada, espancada, morta, basta.

Mas a rotina retoma.
Chega a noite, abre a loja, e outras coisas.
Quase todas iguais. Umas mais fufas que outras. Umas mais esquisitas que outras. Em saldos umas. De luxo outras. As razões confusas. Um carro das notícias à espreita para fazer uma reportagem. Elas vêem-no. Fazem que não vêem. Entram no primeiro carro e dali a minutos vêem-no. Regressam ao mesmo sítio. Dinheiro escondido. Um susto ou nada demais. Gozo. Piadas e coscuvilhices desta e daquela. Um trabalho como os outros. Quem tem sorte são aquelas putas estrangeiras! Passam o dia a dançar e a bater punhetas. Moedas a cair para deslizar as janelas. Lenços de papel nos baldes ao canto. Música ‘techno’ aos pulos abafada. A voz a anunciar a número 4 Andrea para fazer companhia à 2 Laura. Cabines repletas. Alguém tem de se contentar com as cassetes de vídeo. A estas chamam-lhes as putas do peep-show. Algumas transsexuais? Algumas elas que foram eles? Feias ou bonitas, todas tiram a roupa mínima. Como se fosse coisa do outro mundo. Os espelhos facilitam e prolongam a vista. Privacidade nenhuma. Olhos nos olhos. O tecto a rodopiar a távola vermelha. Se duas, quase pára. Um sorriso repetido sempre da mesma forma. Os mesmos gestos copiados. Lá chega uma nova. Genica. Que língua fala? Desaparece por trás da cortina. Novo lenço na távola, nova cara, nova coxa, nova rata, carteira vazia. Rua fora.

Quiosques repletos de capas. Playboy. Penthouse. Clímax. Peles lisas. Bocas bem desenhadas. Seios firmes. Esculturas rapadas. Desenhos artísticos. Há pouco duas tinham celulite, quando mais se mexiam. Uma estava com pele de galinha. Outra tinha um penso rápido numa mama. Acabada de passar a lâmina há minutos noutra; pele sensível. Duas grandes borbulhas vermelhas, uma em cada nádega. Do sensual ao serenamente cómico.

Mas se a noite se prolonga, só a mentira fica pronta, e de gala, junto à fantasia.
Imagens pixelizadas de bocas pulposas com as línguas de fora ainda a pingarem leite. Fontes de mamas espalhadas pela cidade escura e obscura. Cada carro uma boleia para as estrelas. Abertas as braguilhas da sociedade, baixadas as calças, levantadas as saias, abertas as pernas... somos todos a mesma criatura?

O romance ficou à porta.
Quem escrevia cartas às meninas? Quem visitava os bordéis às sextas-feiras e aos sábados? Quem tinha uma fixa? Quem pagava mensalidade? Quem sabia a história de todas?
Como te chamas hoje?
Que te interessa? Sónia.
E tu?
Não é da tua conta. Paula.
Queres chamar a tua amiga?
Quem, a Sandra?
...

Todas sónias. E sandras, e martas, e paulas, e anas, e algumas com nomes estranhos de letras em ordem confusa, e sempre de muito poucas palavras. Depois refinam-se. São susy. São dany. São eleide. São mary. São caty...
Mas para quê, se vais ter a boca cheia!? Entra. Toma, guarda já. Tens meia hora. Chega. Vai-o chupando enquanto bates uma. Isso. Isso! Espera. Ah, é tão bom! Tu és tão bom, querido! Excitas-me toda! Ah, puta, isso... chupa-o todo... Tão boa... Fode-me, querido, fode-me toda. Queres, não queres? Já levaste com ele na cara agora queres levá-lo na cona! Abre-te toda, minha puta! Isso, isso... Ah, isso, mete-o todo, querido! Enterra-mo na cona! Põe-te de lado, para te ir por trás, minha puta! Ah, tão boa... ah, tão boa... Toma, é isto que queres? É, não é!? Sim... sim... Diz mais alto! Sim! Já estás a gemer? Ah, sim, sim! Ah, fode-me toda! Isso, fode-me toda! Puta! Ai, meu Deus! Ah, sim, sim, sim! Entra-me! Enterra-mo! Fode-me! Anda! Fode-me a cona toda! Fode-me toda! Anda, garanhão! Anda, querido! Vem-te na minha rata! Deita cá para fora essa esporra toda! Ah, puta de merda! Boa!... Anda... Toma... queres levar nela... Sim, mais! Mais! Enfia-o todo! Enfia esse mangalho todo e esporra-me a cona toda! Não, quero-me vir na tua cara! Estás-te a vir!? Quase... Estou quase... ah, minha puta, toma, chupa-o e engole a esporra toda! Encharca as mamas! Espalha-o todo! Isso! Isso! Ah!... Mmm! Isso, isso querido! És tão forte! Isso, querido... Mmm...

De volta tudo ao sítio.
Ao bocal de partida.
Ao local de chegada e ida.
À Sida?
Paciência...
No fim é tudo sobre quem quer e quem paga.
Só.
Farsa palhaçada?
Quem sabe de que se fala?
Só se conhece quem actua - loira, morena, mulata, asiática, brasileira, eslava, baixa, alta, magra, esguia, gorda, mamalhuda, escanzelada, doente, bonita, horrorosa, pintada, porca, de cá, de fora, desta zona, do chulo x, por conta própria, só para pagar a escola, esta é de graça, para a droga, para a roupa, como uma esponja, só quando precisa...

Alguém encontra de manhã uma prova?
Impecável limpeza.
A polícia.
Como a outra, na praia...
Boleia para a aventura. Mais uma nota, mais uma viagem. Mais uma dose.
Droga de vida, a vida para a droga. Comida e roupa lavada ou renda.
Chamam-lhes meninas, mas já são crescidas.
-Antes isto que lavar escadas.
-E quem me paga a casa?
-Quem me dá a sopa?
A mais velha companheira da rua.

Conhecem-se quase todas. Batem as zonas. Ficam-se por uma. Respeitam-se e odeiam-se. Comadres e concorrentes. De luxo barato a baratas. As grandes companhias valem hotéis pagos à diária. Algumas são estrelas. Algumas casam mesmo com eles. A maioria é como em tudo o resto o que é a maioria, fica-se pela maioria e fica-se pela média.

Quem as vê na rua, se é homem, levanta a cabeça e sonha, depois deseja, depois pensa e continua, com a cabeça baixa; se é mulher levanta a sobrancelha e desafia, dando o braço a quem tem ao lado, e nem desconfia...

Algumas nem se reconhecem quando nos vendem o que vendem na loja de dia, enquanto dobram a roupa, enquanto embalam ou enquanto fazem o que fazem, das compras na mercearia à discoteca.

Pelo meio, no fundo ninguém se conhece mesmo, mas vale sempre mais a pena compor a personagem, trocar a calça pela saia e a discrição pela cor garrida.

Eles, alguns, têm de passar na lavandaria longínqua para tirar uma marca rosa da gola da camisa. Mas se a coisa escapa na miopia da chegada, e se é vista pela que vive a vida (não a da rua), também não há problema:
-Ora essa, amor, foi só uma menina.

(escrito em 2002.02.17)