Wednesday, October 19, 2005

Chamavam-lhe “O Marinheiro”

No dia 1 de Janeiro do ano de 2002, mais conhecido pelas bocas dos transeuntes como o “dia de ano novo”, pelos bancários e economistas como o “dia de estreia do euro”, pelos trabalhadores da meia-noite como o “nunca mais passa?!” e pela minha avó simplesmente como “ano novo ou ano velho são todos iguais!”... Corria, portanto, já o primeiro dia do ano a seguir ao anterior - para os curiosos, a saber uma terça-feira- quando todos os locais de uma pequena vila deixaram de ver, nas regulares ocasionais aparições pelos cafés e pastelarias e restaurantes aquele que era conhecido e a quem chamavam de “Marinheiro Ex-Reformado”, ou simplesmente “O Marinheiro” ou, ainda, “o Ex-Reformado”, que isto gente parcial abunda por toda a parte...

Quem saberia a sua real situação, desconhecia-se, mas era caricata. As perguntas sucediam-se como a praça ao meio-dia, mas as respostas desertificavam-se como a praia vista de madrugada. Pelas bancadas dos cafés e varandas de vizinhas, contudo, era certa a nascente do bizarro título, pois que só aí mesmo surgia este tema para conversa.

Mas que fazia ele antes? Pescador ou marinheiro.
Mas chegara à reforma?...
Quem saberia?...
Sabia-o o próprio, de certeza.
Mas alguém lho escutara?
Alguém o escutara?...
Talvez o tivesse dito num momento de clareza de voz sobre as outras sempre amontoadas.
Mas em que dia?...
Quem tinha estado atento?...
“O Ex-Reformado”...

...Posição de vida curiosa para quem escutava tal coisa pela primeira vez, mas como não o escutava da boca do próprio tornava-se assim matéria mais para um sorriso que título de loucura. Seria um homem indeciso... Ou talvez um rotineiro ciclo do faz e desfaz, desiste e volta a tentar... um daqueles velhos que do hábito de uma vida a trabalhar já não consegue estar quieto.
O facto, esse indesmentível e que ficaria mesmo para a história da vila, é que nesse primeiro dia do ano se deixou de ver pelos poisos de costume o conhecido de longe marinheiro, pescador, ex-reformado solitário misterioso.

Os que, do tempo tendo-o visto mais do que uma vez, podiam agora recriar parte da sua rotina, relatando em pequenos movimentos de braços -a maior parte apoiados numa coxa ou sobre o pau de uma bengala- como aquele homem se deixava estar por ali, sempre discreto, sempre a uma mesa sentado de forma desleixada, desajeitada e descuidada, sempre de camisa grossa com as pontas de fora da camisola e quase sempre de costas voltadas para a parede. Sempre assim. O corpo começava curvado sobre a mesa, depois ia-se voltando, ficando de lado, e a dada altura já tinha escorregado pela cadeira envernizada e a mão segurava a cabeça, uma cabeça robusta e redonda e de cabelos desalinhados e grisalhos a cobri-la, uma cabeça com um rosto definido e de rugas fundas, barba por fazer e rija, dois olhos cinzentos que olhavam o que iam olhando por olhar, ou realmente estariam menos atentos do que aparentavam e atentavam nos restantes, em amizades com as companhias humanas e alimentares. Quanto a si, quase sempre se deixava entregue apenas ao seu copo de cerveja, que nunca bebia até ao fim, alguém o notara uma vez. E quem dono dos cafés, não perguntava mais do que aquilo que já se sabia. E o marinheiro na ex-reforma nada também dizia por acrescento, nem sequer uma nova ruga se lhe desenhava por isso, talvez um completo alheamento a tal curiosidade fosse o que lhe pairasse na alma verdadeiramente.

E assim, com uma história comprovada e conhecida que se poderia resumir a duas linhas de uma coluna de jornal, se deixou de saber no primeiro dia do ano de 2002 mais alguma coisa desta presença regular, ainda que discreta e só notada pelos de maior frequência nas cadeiras e com tempo de sobra, e também com alguma visão atenta.

Contudo, o mais triste nem seria este dia de decisivo abandono ou desaparecimento deste homem tão curioso aos outros como tão pacífico e reservado.

O mais triste foi, meses depois do seu desaparecimento confirmado pelo tempo, quando já o próprio facto esmorecera pelo acontecimento em si ou quando só os resquícios do seu nome e título sobreviviam, aparecendo a seguir aos temas vagos de recurso “tempo”, “clima” e “lá por casa”, foi só então que se descobriu, por um qualquer parente afastado ou conhecido de confiança que veio limpar e vender a casa –falada e nomeada localmente por “velha barraca carcomida”-, que muitas histórias havia da boca deste homem escritas em papel, histórias que decerto, se alguém lhas tivesse pedido, certamente as teria contado, apenas e muito provavelmente com a mínima exigência de ser à noite e em volta de uma lareira, ao borralho, esquentado até mais pela atenção em volta e pelo copo ao lado.

Recriminaram-se alguns por não terem insistido em quebrar-lhe o silêncio, puxando a língua deste velho até muito bem conservado. Outros cedo esqueceram isso e do mesmo modo se debruçaram no testemunho legado ao futuro ou mais propriamente ao acaso.

Eram papéis intermináveis, folhas sobre folhas que se juntavam em blocos e formavam pilhas onde se seguravam prateleiras intermináveis com mil e um artifícios e ‘souvenirs’ artesanais que fizera e ali deixara, como tudo o resto, à excepção da sua presença em corpo e vestimenta.
De entre todas, havia uma bela história, com certeza autobiográfica, a narrar as aventuras e desventuras de um jovem oficial da marinha; este, segundo se contava, ter-se-ia apaixonado verdadeiramente num certo dia de Verão, depois de mil portos visitados e o triplo das viagens rendidas ao serviço da companhia; contudo, o destino ou a vida simplesmente em si, fora-lhe traiçoeira e trágica, e apaixonara-se o jovem oficial pela única mulher que, de entre milhares, viria a desaparecer no mar, fatidicamente, um ano depois de consumado o casamento de ambos, ocorrência esta suficiente e, segundo alguns, até justificável e sem repreensão, que levou então o jovem oficial a desistir da carreira de uniforme e a enveredar por um labiríntico rodopio de mais de 30 anos no mar a segurar a roda do leme pelo traço de rotas mercantes secundárias e perigosas tanto quanto a morte; Mediterrâneo, Atlântico e até o Árctico, sem contar a rotina pelo Mar do Norte... sempre a desafiar a vida, sempre no fio da navalha, e nunca, nem por uma só vez, o barco em que seguia se voltou, nunca mais de uma vela se rasgou, nunca um motor quebrou... após tal evidência aceite daquilo que o esperava, ou melhor dizendo, do que ele teria de esperar, afastou-se de todos quantos conhecia e foi encontrar, remotamente, um local calmo e pacífico, onde numa simples barca se deixou a apanhar peixe diariamente; aprendeu meia-dúzia de palavras da língua natal da sua nova casa (ahh!, exclamaram os naturais e os biógrafos quando deitaram pela primeira vez os olhos aos papéis com as histórias) e foi vivendo do pouco dinheiro do peixe seco que então já ia reunindo alguns adeptos, escassos fanáticos mas vários curiosos; com o tempo, a carne ficara mais balofa e envolta por gordura, e apenas nas arestas da face a expressão seca pelo sol e pelo sal se mantinha; a barba era sempre de dias; a expressão distante; a voz muda; enfim a figura desaparecera como aparecera.

Nas demais histórias incluíam-se, entre as que posteriormente foram traduzidas e publicadas, a de um caranguejo medroso e a de um cavalo marinho que saltava mais ostras juntas que qualquer outro, relatos de viagens, aventuras no mar alto (colocadas estas nas prateleiras temáticas das bibliotecas junto ao "Moby Dick" do Melville, o que decerto muito teria orgulhado ao marinheiro agora também autor misterioso) e também pequenos contos inacabados, outros refeitos e com finais diversos, alguma poesia, narrações desconexas, vários diários e muitas cartas, ainda seladas e deixadas por enviar.

Alguns desenhos e ilustrações deste misterioso estrangeiro, que preenchiam várias das páginas brancas e virginais na compra dos cadernos, foram também reproduzidas na tipografia local da vila, depois distribuídas pelas crianças, que as pintaram a seu gosto, e finalmente os melhores resultados expostos no salão da Câmara; daí, alguns seleccionáveis, entre dedicácias e pinturas de autores consagrados em homenagem à personagem misteriosa, seriam também reproduzidos, expostos e publicados, este último verbo apenas para uma dezena de entre os previamente escolhidos, a rematar a compilação com o aval e mecenato da Câmara, a celebrar as tradições piscatórias e marítimas da vila.

A verdade, no entanto, é que o desaparecimento de alguns homens, ao que parece, é rápido e instantâneo, quando de imediato se dá pela sua partida, como também pode ser presenciado e mantido por instantes mas sem se afastar do fugaz, situação em que o facto não passa despercebido mas também não ocupa preocupações, como pode ser nunca desprovido de mistério, tragédia e uma boa dose de romantismo, no caso de raros factos haver para explicar e descrever o enquadramento, sempre gerando portanto efabulações, dúvidas e várias versões para a mesma história incompleta, todas tão parcas de confirmação quanto recheadas de segredos, enigmas e até mitos, assim alongando-se no tempo.

As crianças, essas, aproveitam o que existe para sussurrarem aos ouvidos umas das outras, e sobretudo das mais velhas para as mais novas e pequenas, nas noites mais nevoentas e frias, que o marinheiro de lança à caça de baleias deixará o mar alto para vir à costa e bem depois bem dentro da vila espetar a lâmina e apanhar para si o primeiro desgraçado, afogando-o em seguida e sem piedade, voltando depois sedento para os indesejados, os amedrontados, os que chorarem ou gemerem nem que baixinho debaixo dos lençóis.

Os pais deixam as lendas levitar e vaguear com sorrisos nostálgicos.

Os mais velhos de todos, de mãos nas coxas e bengalas, voltam a repetir os mesmos relatos sobre “O Marinheiro Ex-Reformado”, agora já nomeado como “Marinheiro Desaparecido”, que a excertos colados aqui expus neste primeiro dia do ano de 2002, quando vão já começando a circular moedas novas pelos dedos das mãos de todos, pelos balcões ora sujos ora limpos, pelos bolsos mais pesados.

Distantes de tudo isto, a apenas alguns metros, na areia da praia, as gaivotas vão levantando voo.


(escrito em 2002.01.01)

Chamam-me “gordo”

Gordo. Gorducho. Rechonchudo. Obeso. Bola. Adiposo. Forte. Anafado. Baleia. Balofo. Chama tu. Ele. Todos. Chama lá. Tens chamado. Diz-me na cara. Se eu pudesse. Oh. Se eu pudesse. Não digo. Penso. Maldito. Que tens tu? Perfeito? Chamam-me assim. Sei. Sei de certeza que chamam. Chamam isto e mais. Já ouvi. Já mo disseram. Até ao ouvido. Mas é quase sempre de longe. Quase sempre. Em sussurro. Para o lado. Como quando se cospe. Às vezes dizem que é na brincadeira. E chamam: “Ó gordo!”. Chamam mesmo. Já chamaram. Tantas vezes! Andava eu na escola e já chamavam. Sabem lá. Não sabem.

Entro numa loja. Chamam. Olham. Chamam a olhar.

Saio do carro. Olho em volta. Todos me chamam. O olhar chama.

Não olhem.
Não de frente. Que tem? O meu umbigo. Todos temos. É um direito. Não precisa ser igual. Dilatado. Só isso. Peito descaído. Não é. Nada disso. Eu sei-o. Mas não precisam sempre olhar. Estar a chamar-me. Gordo. Gordo. Gordo... A olhar. Gordo. Gordo. Gordo... A apontar. Gordo. Gordo. Gordo...

Em casa. Vivo. Paz. Silêncio. Nem um só olhar. Às vezes. O contrário. O oposto. Todos ligam as tv’s. Às vezes tiram o som. Olham. Olham. E olham. Eu não. Não olho. Tiro os olhos. Dos outros. A imagem passa a preto. Só preto. Não me chamam mais. Cegos. Como na rádio. Ao telefone. Numa carta. Antes fosse. Já foi. A Clarinha. Falávamos muito. Mas depois. Tudo igual. Como as outras. Tudo bonito. No reino da fantasia é tudo bonito. Elas vêm só com o coração. Mas só quando não podem ver com os olhos. Nem passámos de duas horas. Um mês... Falámos um mês. Um mês para depois... Aquilo. Isto. Tudo. Igual. Todos. Chamem lá. Gordo. Baleia é a tua mãe. Palhaços. Queria a minha mãe ter netos. Nunca. Crianças. São as piores. Nem pensar. Pai gordo. Bastou o meu. Basto eu. Chego.

Ao trabalho não ligo. Ando ocupado. Mas olham. De certeza. Olham. Que eu sei. Olham todos. Não me preocupo. Sabem a pergunta? De que cor são os meus olhos? Ninguém sabe. Só a minha mãe. Acho. Mas a barriga sabem. Guardam bem direitinho. “Tenho lá um gajo no trabalho que parece que anda grávido!”. “Anda lá um com uma barriga de 8 meses!”. “De gémeos!”. O costume. Eu não ligo. Já liguei. Nem os olho. Não preciso. Olho os tectos. Os cantos. As fendas. As juntas. Os planos. As plantas. Alicerces. Mais um traço. É preciso. Aqui. E ali. Corrigir isto. Aquilo. Chegam as 8. Nem faço caso. Saem todos. Eu não noto. Desligo. Saio.

Um dia. Um dia digo. Chamem-me gordo outra vez. Chamem. Não tenho problemas em admiti-lo. Mas não gosto. É diferente. Uma coisa não tem a ver com a outra. Sei que sou gordo. Não é por isso que me podem chamá-lo. Haja respeito. Sou apenas um homem. Engenheiro arquitecto. Pau para toda a obra. Tenho arcaboiço para isso. É o meu trabalho. Como. Sabe-me bem. Pronto. Está dito.

Chamam-me gordo em todo o lado. Por todo o sítio. Toda a gente. Já fiquei fulo. Hoje. Menos. Menos vezes. Mas mais gordo. Nem vou ao médico. Mas já me mandaram. Até para o circo.
Esqueço.

Não interessa.

Chamem lá gordo. Gorducho. Rechonchudo. Obeso. Bola. Adiposo. Forte. Anafado. Baleia. Texugo. Elefante. Gorduroso. Nojento. Doente...

Sou eu.
Vítor Coelho...
Destino cínico.
Até ele.
Até o nome.
Até o nome me dá fome.




(escrito em 2004.09.30)