Thursday, August 11, 2005

Chamavam-lhe “C.M."

Tive um amigo a quem chamávamos C.M.
Só a malta de Ermesinde o conhece.
Desde que saí de lá, nunca mais ouvi nada sobre o C.M. Chamávamos-lhe CM porque só tinha 2 cm. Mas por causa da situação minorca dele tínhamos alguns complexos em lhe alcunhar de centímetro. Então usámos as mesmas iniciais “cm” de centímetro e do jornal Correio da Manhã para o chamarmos de “CêEme”. Era mais subtil. Só para disfarçar. O CM não levava a mal e a nós simplificava-nos o trabalho.

Com o CM havia sempre episódios de bradar aos céus!
Uma vez andou desaparecido durante 1 semana. Os pais dele já estavam a passar-se dos carretos. Ainda chegaram a ir aos telejornais, mas ninguém acreditou neles e no facto verídico de terem um filho minorca com apenas 2 cm. Felizmente, lá acabaram por encontrar o CM. Estava enfiado no meio dos pitons da chuteira do Albino. Tínhamos ido jogar futebol uma semana atrás e no meio de um lance confuso o CM enrolou-se todo e o Albino acabou por pisá-lo. Também, diga-se de passagem, o CM não estava na equipa senão por misericórdia. Nós bem o avisámos. Mas que se pode dizer a um gajo que insiste que pode marcar golos de cabeça...

Certa vez chegou-se ao pé de nós com ares de suspiro:
-Arranjei uma namorada.

Pelos vistos a fulana era de um bairro de ali perto. Nenhum de nós, do grupo, a tinha visto mais gorda. Ou mais feia. Quando o CM mostrou a foto ninguém piou. Era óbvio que a gaja só se tinha metido com ele para dar nas vistas e andar nas bocas do mundo. Nenhum conselho ou advertência saiu da boca de uma só cara borbulhenta naquela hora. Isto de gajos enrolados com gajas é mesmo assim, cada um que se cuide e aprenda com os próprios erros. Porque quando um gajo anda apaixonado, anda apaixonado. Ou dizendo como o Larva sempre dizia: quando um tipo tem de esvaziá-los, qualquer tronco é macio...

Aquilo não durou muito. É claro. Nem podia. A fulana deu-lhe com os pés ainda nem o CM tinha adquirido poderes para tocar em todos os pontos sagrados, nevrálgicos e estimulantes. Pelo menos de livre vontade e sem para isso ter de passar privações e humilhações.
Andou por baixo durante meses. O que não deixa de ser caricato, para um tipo com apenas dois centímetros de altura...

Estava o CM a começar a recuperar quando eu me pirei do bairro. O meu pai estava farto de subúrbios semeados de apartamentos T2 e T3 com menos de 80 metros quadrados e fomos ainda para mais longe, onde as casas eram maiores e mais baratas. Ainda cheguei a encontrar depois alguma dessa malta, mas sinais do CM, nem vê-los.

Há quem desate a rir quando conto histórias do CM, mas não me importo grandemente. Foi uma dessas amizades de infância imensas, das que ficam para a memória. Lembrar-me dos tempos em que íamos todos de férias e o CM não pagava nem viagem nem quarto porque o metíamos no bolso, lembrar que o gajo se metia na casa-de-banho das gajas da colónia de férias e nos vinha trazer as cuecas que sacava de surra, as notas que juntávamos à barda à conta das vezes que o gajo se enfiava nos escritórios a limpar cheques-restaurante ou, ainda, de como o CM se passava aos pontapés a quem o chamava de Estrunfe...

Há muitas coisas, e quase todas elas muito boas, que guardo desses tempos. Do CM. Da restante malta. E de como foi duro para aquele tipo minorca encontrar a primeira paixão desoladora... É daquelas lições que quase todos temos. Mas poucos as temos à escala que teve o CM. Aliás, viver de tal forma desequiparada a tudo o que nos rodeia só pode ser obra de um grande homem, que ultrapassa de sobremaneira não só as dificuldades mas o seu tempo igualmente. E o CM era, pelo menos até ao tempo em que o conheci, um grande homem. Talvez por isso recorde tudo isto de forma nostálgica e incrédula. E não deixa de ser irónico, afinal, ver na manchete do Correio da Manhã de hoje a notícia "Minorca evade-se da prisão de Caxias por entre as grades".

Grande CM!
Nunca ninguém apanhou aquele gajo.


(escrito em 2004.09.02)

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