Monday, October 18, 2004

Chamam-lhe “o canário”

Chamam-lhe “o canário”. Mas também já ouvi chamarem-lhe “avezinha” ou “coisa fofa”. Os brincalhões conhecidos, os amigos à distância e um ou outro familiar que ainda lhe fala chamam-no Sandro. Os que passam pelos locais habituais por onde ele pára e levam já um copo a mais em cima chamam-lhe “fufa”, “querida”, “maricas”, “mariconço”. Mas de entre todos estes alguns há, e outros de outras categorias, que lhe chamam nomes de todo o tipo e calão baixo. “Prostituta de pilas” foi a última dessas, ainda ontem à noite.

A roupa, essa, terá sido a desculpa para o baptizado. Porque se chamam as coisas pelo que os olhos vêem. Talvez por isso tanta gente diga tantas coisas, porque vê mais do que pensa. Ou porque os olhos são dois e a língua é uma, e nunca fomos bons a resolver dialécticas e dilemas.

Camisas de manchas de cores garridas. Camisas de riscas finas mas vivas. Camisas de seda com padrões de selva e ilhas tropicais estampadas. Azul céu com laranja vivo. Vermelho com verde. Calças de pinças e perna curta, a mostrar o tornozelo nu e os pés sem meias calçados por sapatos pretos, de pala. Às vezes traz sapatilhas, brancas, todas brancas, a condizer com a camisa interior de alças a servir por fora como qualquer outra. Decoros são um ou outro anel, por vezes um fio fino de ouro ao pescoço, no Verão um fio com missangas coloridas no tornozelo direito. Aparência descrita garrida, mas na realidade até algo discreta e, diga-se em abono da verdade, segundo os padrões da moda, muitas vezes mesmo elegante, na sua originalidade distinta.

Mas quem sabe, talvez seja mesmo por isto que lhe chamam canário.
-Canário!
-Olhó canááááário!
-Ó canário queres o meu caralho?
-Ó canário queres o meu bico?
-Canááário! Ó canário! Queres um bico, canário?
-Queres-me um bico, canário?
...
Talvez possa ser pela roupa. Eu não creio.

Se o Sandro cantasse, podia ser por isso. Podia ser pelo dicionário, pelo canto delicado que se diz ter o canário. Mas delicado mesmo, só o seu vulto, parado e sereno pelos poisos do costume, onde sente que está mais protegido. Nunca se viu a erguer-se no espaço, mas antes se abstém de subir ao poleiro e fazer como outros, a proclamar de galo o que são como se do zero passassem a mais que infinito.

O Sandro é diferente.
Só isso.

Deixa-se estar a ler uma ou outra revista na borda da mesa. Apoia os braços no corpo, apertados, aparência esguia e franzina, frágil, quebradiça. Corpo magro, braços finos e pernas de palito. Qualquer um lhe podia partir um membro. A maioria já lhe quebrou mais do que isso. Retirou-se o respeito, esfumou-se o amor-próprio. Há quem diga que é por isso que não canta “o canário”.
-Foi por outro.
É a nova justificação apresentada por quem o vê ali parado na mesa do canto, sempre que está vazia.
-Diz-se que foi o seu único namorado, ao contrário dos outros.
-Pouco pássaro é o que tem só um ninho...
Mas este tinha.

Só por um tinha pousado, só por um ousara usar o mais proibido: a diferença. E daí ficara conhecido, daí passara a posar na rua, os gestos em candelabros com ondulados rebuscados, delicados passos, a voz meiga, os olhos doces, o par ao lado.
Por um tinha vivido igual ao que sentia. Menos igual em volta. Igual a si mesmo. Confuso para quem olha. E no entanto a rua é a mesma, o café o mesmo, a cadeira a mesma, o dia o mesmo, o tempo o mesmo, e todos juntos na mesma gaiola. Menos agora.

Lá fora é a sua prisão. Lá fora quando todos vivem lá dentro. A vastidão da solidão, a amplitude do silêncio, a infindável linha do horizonte despida, e no entanto, apertados, todos num cubículo, mas todos juntos. Menos ele, lá fora, à porta, mas sem estar à espera, apenas sentado na soleira e encostado à parede, a ver as sombras mudarem pela viagem da estrela.

Por vezes vê-se que escreve qualquer coisa. Mas é pouco o que escreve. Diz-se que escreve memórias. As empregadas de balcão que só o vêem de longe dizem que são saudades. Os mais cépticos dizem que são notas de trabalho, afazeres e deveres. Os mais taciturnos cartas de despedida. Os deprimidos a mensagem de partida. Há quem diga que é poesia.

O Sandro, esse, por ali fica, raras vezes deixando as folhas -as suas ou de uma revista- para olhar o mundo lá fora presente nas suas pessoas, nas suas casas, nas suas máquinas, nas suas perigosas e fantásticas descobertas, na sua ciência como na sua ausência, de rostos pobres e rostos afortunados, mais raramente ainda desprendendo um sorriso. Quem o viu diz que é de ironia; pelo infortúnio, entenda-se.

Talvez por isso as camisas coloridas. Uma convalescença. Um luto à sua maneira própria. A recordação de quem eram e de quem as usava. Apenas a persistência forçada, todos os dias, da cor de outrora sobre a presença negra de cada hora vivida agora.
A maldição atinge todas as criaturas.

Ainda assim, por brincadeira há quem lhe chame canário, outros por prazer pela inflicção de sofrimento, outros pelas suas razões, alguns sem razão alguma. A maior razão de todas, contudo, e a meu ver, apenas uma: porque ele existe ainda, porque ele deixa.

A sua flor encarnada está branca, mas respira, vive, resiste, aguenta. E se maior canto de sobrevivência existe, aí está a sua magnificência plena, e de borla, a toda a hora com uma chávena de chá de tília ao lado, sempre vazia. Nunca se o apanha sequer a mexer a colher. Quem sabe há muito deixou de acreditar no açúcar.
Quem sabe...
Quem sabe de onde terá vindo o seu nome, nem a escassa família afastada que o conhece o explica devidamente. Quem sabe onde acabará, se hoje se amanhã, se definhando longamente ou desaparecendo num instante; também isto ninguém sabe.

De todos, só uma ou outra criança que o desconhece o chama e distrai. Há miúdas que lhe assobiam de longe. Até tipos que se sentam ao lado. Velhos bêbados há já demasiado tempo velhos e demasiado bêbados para notarem que se deixaram dormir a ele encostados. Um cão no chão bem perto dos pés. Um chato a provocar o desafio... E contudo, deste canário ali sentado, sempre que possível, no banco do canto, não sai uma palavra, nem um pio, só um olhar sereno e triste e abandonado, só um gesto vago a tirar da carteira o dinheiro já conhecido, só um sorriso cordial e tão fugaz que mal notado. Da sua boca não sai mais nada, nem explicações, nem perguntas, nem reclamações, nem lamentos. A tudo proclama com o seu canto próprio que só ele escuta e os outros conhecem de há muito, e sempre da mesma forma, sempre no mesmo tom, sempre com a mesma múltipla cor vestida, sempre assim, em silêncio, em completo e total silêncio.

Mudo?
Nem por isso.
Mas se há pássaros que não voam, porque não haveriam também os que não cantam?

(escrito em 2002.03.23)

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