Tuesday, August 23, 2005

Chamavam-lhe “Santos Carlos”

Chamavam-lhe... perdão, ele insistia em que o chamassem e tratassem e nomeassem pelo apelido Carlos e nome Santos.
-Santos Carlos!

É lógico que o inverso estava patenteado no passaporte e carta de condução, bem como na fotocópia do B.I., que o original onde é que já ia ninguém sabia...
Contudo, e ainda que fosse de louvar a sua ideia de se chamar e ser chamado como se uma ficha desportiva se tratasse, "Santos, Carlos", com a decorrente ironia da inversão originar um plural de fé, a verdade é que ele se ria tanto de cada vez que se apresentava pela primeira vez a uma qualquer nova pessoa que, por isso, logo lhe retirava qualquer hipótese de sucesso pela iniciativa, originando imediatamente no receptor da mensagem os graus de 'grande' e 'enorme', o que até nem seria mau de todo, se não estivessem a preceder as categorias de ‘louco’ e 'anormal'.

Santos Carlos, contudo, ignorava a generalidade de todas estas coisas, e logo a seguir à apresentação do seu nome invertido completava:
-Santos Carlos, ex-ascensorista.

Depois, variava, ora colocando o términos do "tcham" que achava impactar nas pessoas com um solene "um prazer" ou um também não menos usual “às suas ordens”.
Daí, várias situações se podiam originar.
Uma das mais frequentes era Santos Carlos debandar em procura de outra alma, mais conhecida e já habituada aos seus devaneios e histórias, e principiar por chatear com a repetição de lenga-lengas sobre marquesas que conhecera no Hotel Tivoli ou no Ritz, que fora ele quem dera o conselho final ao presidente em visita ( e do qual, curiosamente, não sabia o nome nem descrição sequer aproximada) do Four Seasons para se consumar a fusão entre esses dois gigantes, ainda que o topo do Sheraton vira já um homicídio ocultado ou que no quarto do 6º piso (número a não revelar por obrigação e princípio de profissional do meio) se deixara estar 8 horas seguidas em sucessivas partidas de Póker com um grupo de empresários alemães.

Outra situação surgia quando, sabe-se lá porquê, algum dos recentemente apresentados se mostrava impressionado com a personalidade de Carlos Santos. Aí ele não se calava mais. Mediano de estatura esticava-se e parecia ganhar mais 5 centímetros, a barba apenas de dois dias era cofiada à mesma, num gesto sábio e de quem reflecte imenso na vida, os cabelos lisos muito bem penteados para um dos lados alisados ocasionalmente, e a pose de um sábio a fazer semicerrar os olhos nos momentos mais secretos e a iluminá-los durante uma anedota, que, claro, era contada no original alemão/francês/inglês/italiano e com concomitante tradução frase-a-frase para o português, resultando numa galhofa final dele e em simples sorriso delicado ou simpático do ouvinte.

A minha história preferida era nenhuma história em particular, mas as situações gerais que ele contava, sem poder definir alguém em particular, sem poder atirar uma data ao ar ou sequer nomear um dos hotéis em definido; eram as histórias da rotina de ascensorista, essas, as que eu, por mim, ouvia até acabar o copo e estar a cair de sono, tendo entretanto já rido e meditado profundamente. Porque não é de descurar a enorme capacidade deste Santos Carlos para contar histórias. Sobretudo nos dias mais chuvosos, em que ficava fechado por mais de duas ou três horas num café e ninguém tinha grande pachorra ou sequer mesmo interesse em o cumprimentar, como sequer ouvir, aí tornava-se uma presença profunda, de voz cava e rouca e olhar perdido num horizonte de balcões e copos e chávenas, nas ruas apinhadas lá fora, no cimento dos passeios, num pormenor de um casaco de alguma pessoa. Aí, deixava as histórias de ascensorista, sacava de um cigarro já muito melindrado pelas vezes sem conta em que entrara e saíra do maço, e punha-o na boca ao dependuro. Depois começava a falar, quem sabe se para o escutarem ou simplesmente para si mesmo. Ia e vinha, de tom e no tempo, ora a perceber-se claramente o dia em que começara a carregar nos botões, por acaso numa velha pensão de 6 andares numa rua por trás da Grande Praça, ora a perder-se a voz e a coerência quando já estava na velha casa de madeira do pai e quando recordava a chinfrineira que fora quando da partida da irmã mais velha para o Canadá. “Ainda lá estaria, mas viva ou morta, que sabia?...” Eu não, certamente, nem mais ninguém no café, que entre o silêncio que a chuva sempre traz de oferta só abanava um pouco a cabeça, solenemente, soerguendo um pouco as sobrancelhas pela tragédia de algumas coisas que a todos acontecem nas suas vidas, e depois logo esquecendo o episódio da vida de um velho ascensorista, para, individualmente, um a um, ficarem todos a meditar nalguma coisa do seu passado.

Creio que, em parte, seria até por isso que muita boa gente já não aguentava ouvir muitas filosofias e velhas memórias de Santos, porque temiam vir a odiá-lo como recuperador de memórias e sofrimentos já há muito recalcados. E sobretudo os donos dos cafés queriam a todo o custo evitar isso, não só porque um café de mágoas era bom para vender bebidas mas não para sempre, só a partir das 2 da madrugada e para meia-dúzia de gatos pingados, mas sobretudo porque eles também tinham as suas histórias, e estar a trabalhar com um constante zumbido na orelha a balouçar e a despertar quezílias e problemas e desilusões, entre outras coisas...

Por vezes era eu quem o afastava, e, finalmente, lá começava ele a contar das histórias gerais, das situações caricatas que sempre aconteciam nos elevadores de “qualquer hotel do país, do mundo e, quiçá, se por esse universo fora houverem estalagens, motéis ou hotéis, de luxo ou mesmo de uma estrela apenas, até aí também muitas destas coisas!”. E lá começava: silêncios comprometedores entre duas ou mais pessoas, confissões de pecados, declarações de amor (e, até, um pedido de casamento), politiquices sujas ditas a meia-voz, reencontros de gente desaparecida, gente perdida à procura do hall com “aquele quadro assim e assado que era o único ponto de referência que tinha como do seu andar certo” e muitas outras.

No fim do dia, ou melhor será dizer pelo princípio da madrugada, Santos Carlos, ex-ascensorista, saía do café mais abatido que um herói sem dever cumprido, e dali todos sabiam que só tinha dois destinos: umas duas ou três casas de mulheres que do seu tempo de hotel sempre recomendava a alguns turistas, e de onde retirava depois uma comissãozita, para além de algumas “carícias” e calor humano de graça; ou então a sua velha casa, um apartamento bem no centro desabitado da cidade, perto de todos os maiores hotéis, onde, um dia ou outro, lá voltava, para dar umas dicas aos rapazes das malas e falar com os novos e desconhecidos tal como com os velhos conhecidos recepcionistas, dizer que agora quase nenhum hotel tinha um tipo decente aos comandos do elevador ou sequer alguém presente, havendo até a ideia já avançada do comando ser feito via uma central ou, ainda pior, por computador! – modernices... aliás, uma completa vergonha, deixarem os clientes abandonados ao seu destino!

Quando as manhãs já acenavam os raios, Santos saía então pela rua e entrava desgraçadamente em casa, exausto.
Mulher?
Filhos?
Família de qualquer espécie?
Um silêncio apenas de todos os que o conhecem.

O pai, bruto, vai-se escutando aqui e ali nalgum delírio de copos. Da irmã só se sabe que foi e não veio do Canadá. E do resto uma mudez parece habitar este homem de andar cansado e que teve uma vida como nenhum outro ser humano, tão para cima como para baixo, ou como diria o próprio em tom sarcástico, “como os meus elevadores, cheio de altos e baixos”. Quem sabe, dizem uns, não terá sido tal inconstância que o terá conduzido à perdição!? Deveria o Estado avaliar a profissão e assistir com um subsídio especial?... Deveria jamais ser permitido trabalhar em tal habitáculo por mais de 5 anos?... ... ...

Do que se conhece ao certo de Santos Carlos vem de há apenas 2 anos, altura em que começou a aparecer pelos mesmos locais que eu e outros frequentamos, sem que alguém ainda conheça ou tenha perspectivas de vir a descobrir uma alma que nos possa elucidar e fazer a sua ligação ao passado que só ele conta.

Inevitavelmente, um dia haverá de carregar pela última vez no botão para fechar a porta, pressionar a ida sem volta para o último andar e premir a saída quem sabe angelical, quem sabe de penitência... Como ele lembra, “até a roupa suja se lava nas caves abaixo da terra”.
Inevitavelmente, um dia haverá de chegar que o café deixará de o ter como personagem assídua e personalidade ora em cima das mesas com um copo de cerveja ora debaixo das saias das empregadas a limpar as lágrimas e a implorar por uma noite dormida com duas mamas leitosas a servir de almofada.

Inevitavelmente, um dia a memória de todos apagar-se-á dele e ficará apenas uma impressão vaga, porque na nossa vida há coisas que, nos últimos dias e suspiros, iremos recordar por mais importantes que esta, dilemas e tragédias, felicidades e alegrias simples, viagens e conquistas, desilusões e melancolias.

E um dia, inevitavelmente, nada mais restará de Carlos Santos, o ex-ascensorista que vagueava pelas ruas e cafés na esperança, digo eu, de vir a encontrar um que ficasse no 3º andar e tivesse à porta um anúncio de “ascensorista precisa-se”.

Hoje, contudo, tem uma velha francesa carregada de jóias falsas, correntes de um amarelo vivo e quase chocante, lenço de seda de cores berrantes em grande contraste com as cores da camisola e da saia comprida, brincos pesados e grossos e anéis com pedras baças, tem esta visita que o diz conhecer de há alguns anos atrás, quando houvera trabalhado algures num recém-inaugurado hotel em nenhures, que logo fechara e a deixara na rua, como a todos... e dali já mais ninguém escutou, por que era já coisa pessoal e mútua dos dois e, diga-se em boa verdade, a dada altura até terrivelmente aborrecida.

Na televisão, contudo, o jogo animava-se com a expulsão do defesa, e a filha do Vasco dono do café acabava de inventar nova profissão urbana: operadora de telecomando; e já primava pela técnica rápida e inteligência, baixando o som durante o jogo para que não se fizesse barulho com as vozes três tons acima, levantando quando havia uma jogada discutível e baixando quando era imperioso que se deixassem as pessoas discutir as coisas, terminando em apoteose com o volume a mais de meio logo após o êxtase de um golo, onde todos berravam de qualquer maneira e se cumprimentavam entre da mesma equipa.
...

Inevitavelmente, um dia...


(escrito em 2001.12.16)

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