Friday, October 08, 2004

Chamam-lhe “futre”

Jogava no pé-de-meia lá do canto da vila. Terra batida e por vezes traços feitos a cal. Houve um estúpido e morcão de todo o tamanho que ainda chegou a sugerir soda cáustica. Lambada no focinho e virava logo bailarino da antiga Rússia.
Bandalho, sovina, desprezível, rude, cru, duro, com o fulgor vermelho no rosto em corrida para pontapear ao poste e despejar o máximo de tosco palavreado até depauperar:
-Cabrão! Filho da puta! Foda-se p’ró caralho! Sorte da merda! É sempre a mesma foda de sorte! Maldita cona que te pariu, bola dum caralho!
Mas estaria condenado à pinga e à miséria de uma casa sem reboco e só laranja de preguiça?
Estaria condenada a Luísa que, lado a lado em barreira como as feitas entre as quatro linhas pelos colegas do Futre, haveria de se casar com ele um dia. E não muito tarde diria:
-Ai, que estou tão arrependida...
Mas que fazer a três filhos de ranho a escorrer pelas narinas e terra nos cantos das bocas a ser lambida sem desprezo em vez da comida que escasseia numa casa sem camas e só colchões despejados no chão de cimento em bruto onde os seixos que espreitam por ter ficado de fora da capa cinzenta são vistos como as únicas pérolas esfregadas à meia-luz da deita, como bolas de cristal a quem se pergunta sempre “quando é que isto acaba?, quando é que isto acaba?, quando é que eu saio daqui?...”
Mas não por agora.
Atirou-se à piscina.
-Queres que te dê cabo dessas fuças, mentiroso da merda!?! Ora diz lá outra vez que é mentira! Diz, seu grande filho-da-puta! Diz, se és homem! Ou não tens pila? Não tens pilinha? Queres que eu te dê uma puxadela, depois, no balneário, querida? É, fofa?... Ai p’ró caralho da menina, que nem sabe jogar futebol!...
Bola na mancha. Não vale a pena levantar uma perna ou esticar a luva, a bola é mesmo para entrar, ou à injúria se juntará o escárnio e uma raiva furibunda tal que a primeira canela adversária pelo caminho a vir só terá um destino: a maca.
Já está na rede.
Urros de vitória e alegria esfusiante como espuma a jorrar do gargalo espumante de champanhe. É levantado nos braços. Para os da mesma equipa pouco importa a ética da jogada, o vocabulário na defesa da honra ou mesmo a violência física. Está do lado deles. E a biqueira que chuta fora nunca a nós nos toca a perna... e daí, talvez toque, porque sempre atrás tem de vir a perna para novo balanço, e com ela o calcanhar, e quantas vezes não magoa tanto a retaguarda sem cautela que a frente em investida!...
Futre não quer saber de nada disso.
Acaba a partida e há palmadinhas nas costas de todos. Luísa na bancada a tinir pestanas e roer as unhas. Um joelho bate no outro de tal maneira e com tal força que o spray de cloreto no saco do médico já esteve mais longe de se evitar ser tirado.
Chama-lhe Futre por tudo isto.
Porque tem o cabelo curto à frente e comprido atrás, como se usava nos finais de 80 lá fora, nos princípios de 90 cá dentro. À cigano, dizem alguns em surdina e só à orelha do vizinho.
É má rês.
Vaidoso e mesquinho.
Perigosa cascavel.
Mentiroso como as unhas que se cortam mas sempre voltam a crescer.
Cabrão filho-da-puta!
Suíno fedorento a quem se diz sorrisos e fala acenos sempre afirmativos.
Mas que fazer?
Sai cá fora sem passar o sabão enquanto o banho.
Oscula a primeira que aparece a lamber com a língua de fora o batôn de cereja de efeito ‘gloss’, ou quem sabe não era, mas ficou pela saliva. Calhou, para sorte dele, que a primeira foi a certa, mas se não fosse continuava à mesma. Dizia que o amor é cego e que nem abrira os olhos. Uma qualquer cantiga. Elas quando caídas tropeçam em qualquer peta. Quando cheias dão chutos por qualquer coisa. Na maior parte do tempo nem numa nem noutra. Simplesmente não sabem nada. E é assim que ele pensa.
E dali só uma paragem, na horda que o espera na rua, sempre na mesma banca de pedra à entrada da tasca de bilhares e matrecos. Escusado será dizer que de tacos não pesca uma e esgota sempre os prémios de jogo em cervejas emborcadas e oferecidas e cruzes canhotas é desta bolas atiradas ao pequeno recinto de madeira a apanhar tareia.
Da família nunca irá anuir nada.
-Tá no ir?
-Baza.
-Solta a cavalada!
-É manada!
-É nada, é matilha!
-Tu é que só dizes burrada!
-Vê lá se queres mas é apanhar com a vara, meu grande cabrão!
E disto não se passa.
Investida e ameaça, aqui e ali uma pega, fustigada a atmosfera e chamuscada só por um pouco a crosta gordurosa de cada um que à sua vez toca, logo tudo sai em debandada que há melhores coisas a serem feitas à mesma hora, e à frente, claro, sempre o capitão de equipa, a glória renascida de outros tempos na relva portuguesa, a esgueirar-se com a bola por entre os defesas e a rematar para a baliza em golos sucessivos de grande beleza! O Futre, pois claro! Jogador da realeza e de papo inchado com luz acesa. Ninguém o bate. Ele é que dá os enxertos de porrada. Mas tudo soa a piada. E logo acaba.
Mas, perguntarão os curiosos, como pode tamanha animalidade subsistir à face do planeta sem escrúpulos e sem qualquer decência e ainda recolher taças e elogios e a melhor peça da montra?
Recordar-se-ão do lamento de Luísa, e dos três putos a dormir bem cedo porque não há luz paga a não ser a da lua que se reflecte no seixo polido pela pele bem seca desde cedo.
E da outra dica?
Isso mesmo.
Para quem só conta com a biqueira que chuta e não com o calcanhar que retorna a vida não dura muito sem uma mossa.
Houve nova semente que brotou ainda mais ruim. Houve depois tragédia num dia de chuva com uma poça disfarçada à plaina da água onde mergulhou o pé numa entorse que não repousaria a sarar.
Foi coisa de poucos meses.
Dali, só a talocha.
Ainda se arriscou a ser campeão na bola pequena, mas quem é que já ouviu falar de um Futre ao matreco a fazer carreira? Só de otários a cair de carrinho.
E o tempo passou.
Azar para a Luísa que em cedo tempo engravidou. Já a muleta fazia duas pernas e meia e ela queria tirá-lo fora, mas não a família, nem de um lado nem do outro. Depois veio a esperança, e o Futre sempre a bufar de cima a quem punha em causa que ele cedo voltaria. E mais não esperou. Não o regresso, mas outra queda, desta feita em estúpida travessia de rua fora da passadeira. Nem o seguro acudiu. O condutor pirou-se, apesar de nem ter qualquer culpa. Aqui já a família dela sacudia o capote, mas o cordel estava bem atado ao pescoço há muito, e a primeira chamava-se Joana. Não demorou a chegar o Filipe e a Manela. Hoje espera-se já que venha um Tiago ou talvez Teresa.
Não pára.
É Futre para a vida inteira.
Gaba-se a toda a hora.
Nenhuma rede aguenta o remate dele.
E ri-se.
Ela olha para o lado. Tem vergonha.
Ele emborca mais um bocado. Já tem barriga. Qualquer dia até dali sai nova criança. Ou se põe a dar toques com o joelho.
Não importa.
Do passado ou do presente não há diferença na atitude. E Futre fica.
Até um dia.
Porque depois da chuva lavar a pedra e o vento do tempo varrer a memória ficamos todos a chamar-nos igual e a pesar o mesmo grão de poeira.

(escrito em 2002.02.25)

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