Wednesday, October 06, 2004

Chamam-lhe “Adão Manuel”

Aqui na terra
chamam-me Adão Manuel,
olham de longe a apontar o dedo
e exclamam em sussurro
“é o tosco à cata de papel”,
que eu tão bem escuto do ouvido bom,
escuto enquanto dou mais um passo a um canto,
mais um passo a um canto sempre manco
mas nem por isso eu menos ando
e sempre encontro um bom pedaço
de cartão, cartolina, papel pardo ou caixote para ser espalmado,
e chego a todo o lado,
vou a toda a parte,
mais torto ou desajeitado
mas ser diferente também é arte.
Bem cedo a sopa sabe-me a manjar,
mesmo que na taça e colher de ferro,
Mas lá me diz o médico
“Isso também é preciso”,
diz-me sempre que o visito
enquanto escrevinha nos papelinhos letrinhas e rabiscos que não percebo
para a farmácia e farmacêutico,
mas nunca os uso,
não há dinheiro,
e ao médico só lá vou porque é bom negócio,
há sempre muitos papéis nos escritórios.
Em geral os melhores não são os mais brancos,
mas os pesados.
Aos bonitos e com cheiro guardo-os para mim,
já vou em mil,
passei a conta há pouco,
mas nunca se está satisfeito.
Quanto aos meus dias,
são todos iguais,
ou como aprendi num grosso bloco, idênticos;
Sempre a encher o carrinho que chia no veio,
sempre a empurrar os quilos
enquanto vou
mas também enquanto venho.
Mais um dia ganho.
E não me canso nunca a meio.
Por vezes ajudam-me;
“Ó Adão, chega aqui!”
E nisto dão-me os conhecidos jornais,
uma rapariguinha uma vez deu-me postais
e no meio dos embrulhos em cordel
já encontrei cartas de amor pingadas de mel
e rascunhos de testamentos
e desabafos repletos de fel
e até pautas de músicas
ou fotografias com paisagens distantes,
imagens pintadas com anjos, casas, coisas esquisitas que não percebo
e, confesso,
também já me cá chegaram senhoras com muito bom aspecto
de pele despida em posição lasciva e com lingerie cheia de luxúria,
um intumescimento a inchar-me o centro
ao ponto de me deixar sem jeito...
Outras mais velhas sem grande gosto
e algumas inacabadas e ainda sem rosto,
dizem que eram de um pintor que morreu,
deram tudo,
ou como se fala, “despacharam”
(acho que uma delas era a própria mãe).
Eu pouco me importo com as histórias,
o fim delas é todo o mesmo,
a prensa e a fábrica.
Daqui a uns meses caem cá de novo.
Creio que uma vez já me passou pelas mãos o mesmo papel que entreguei ao Sousa,
é ele quem me recebe e pesa e paga,
tem uma mulher simpática,
“Tome lá uma fatia de bolo, Adão!”,
costuma abusar do açúcar e da canela...
A mim já pouco importa.
A dentadura já há muito que deixou de ser folha nova.
Mas nem tudo são rosas.
No outro dia se não fosse um polícia
pela rua tinham-me abalroado à pressa.
Não há estradas para carrinhos de mão.
Eu também não tenho carta,
minha, pelo menos,
muitas de muitos já entreguei ao Sousa.
Há também uma velhota torta de língua,
chama-me “vadio” e outras coisas que aqui não digo;
Viro-lhe as costas;
Se ela soubesse...
Uma pena.
Tanta palavra desperdiçada na boca de tanta gente.
Tanta tinta escorrida para nada.
Foi o que já disse a uma jornalista.
Eu não vi a notícia na televisão
mas disseram-me que fiquei bem,
apenas a barba de alguns dias podia ter sido evitada.
Sou um papeleiro
sem férias, feriados e fins-de-semana,
não sou advogado.
A minha mãe chamava-me “pequeno carola”
e dizia que eu era o mais esperto de todos;
Tenho saudades dela.
Hoje o que ouço é sempre o mesmo:
“Lá vai o Adão ao papel”
“Olha o tosco do carrinho”
“Aquele ainda não percebeu que uma grama de cobre vale mais que um quilo de papel...”
“Vadio!, sai da frente!”
...
Nesta terra chamam-me muita coisa.
O engraçado é que ainda ninguém percebeu porque gosto de juntar papel;
Porque leio,
porque descubro mais sobre o mundo por onde não ando,
porque me rio com os bonecos,
porque eu não quero ser rico de dinheiro...
...mas isto são frases feitas;
Eu mesmo também não sei porque o faço.
Chamam-me tanta coisa e nenhuma me parece em cheio.
Eu também não sei ao certo como me chamo,
só o primeiro e segundo,
os outros esqueci há muito.
Cá para mim,
acho que vim parar a isto como um pássaro pára num ramo no meio de tantos.
Chamam-lhe destino.
Chamam-lhe outras coisas também,
“escolha”, “objectivo”, “azar”, “sorte”, “acaso”...
Porque também a idade já não dá para pensar de outro modo.
Eu acho tudo engraçado,
sobretudo ao que dizia a minha mãe:
“Adão Manuel, um dia ainda hás-de ser um grande camionista,
ou quem sabe,
talvez até venhas a ter a tua empresa e toda a gente da terra te conheça!”
Acho que ela sabia mais do que aparentava...


(escrito em 2002.03.28)

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