Thursday, September 30, 2004

Chamavam-lhe “O Marinheiro”

No dia 1 de Janeiro do ano de 2002, mais conhecido pelas bocas dos transeuntes como o “dia de ano novo”, pelos bancários e economistas como o “dia de estreia do euro”, pelos trabalhadores da meia-noite como o “nunca mais passa?!” e pela minha avó simplesmente como “ano novo ou ano velho são todos iguais!”... Corria, portanto, já o primeiro dia do ano a seguir ao anterior - para os curiosos, a saber uma terça-feira- quando todos os locais de uma pequena vila deixaram de ver, nas regulares ocasionais aparições pelos cafés e pastelarias e restaurantes aquele que era conhecido e a quem chamavam de “Marinheiro Ex-Reformado”, ou simplesmente “O Marinheiro” ou, ainda, “o Ex-Reformado”, que isto gente parcial abunda por toda a parte..
Quem saberia a sua real situação, desconhecia-se, mas era caricata. As perguntas sucediam-se como a praça ao meio-dia, mas as respostas desertificavam-se como a praia vista de madrugada. Pelas bancadas dos cafés e varandas de vizinhas, contudo, era certa a nascente do bizarro título, pois que só aí mesmo surgia este tema para conversa.
Mas que fazia ele antes? Pescador ou marinheiro.
Mas chegara à reforma?...
Quem saberia?...
Sabia-o o próprio, de certeza.
Mas alguém lho escutara?
Alguém o escutara?...
Talvez o tivesse dito num momento de clareza de voz sobre as outras sempre amontoadas.
Mas em que dia?...
Quem tinha estado atento?...
“O Ex-Reformado”...
...Posição de vida curiosa para quem escutava tal coisa pela primeira vez, mas como não o escutava da boca do próprio tornava-se assim matéria mais para um sorriso que título de loucura. Seria um homem indeciso... Ou talvez um rotineiro ciclo do faz e desfaz, desiste e volta a tentar... um daqueles velhos que do hábito de uma vida a trabalhar já não consegue estar quieto.
O facto, esse indesmentível e que ficaria mesmo para a história da vila, é que nesse primeiro dia do ano se deixou de ver pelos poisos de costume o conhecido de longe marinheiro, pescador, ex-reformado solitário misterioso.
Os que, do tempo tendo-o visto mais do que uma vez, podiam agora recriar parte da sua rotina, relatando em pequenos movimentos de braços -a maior parte apoiados numa coxa ou sobre o pau de uma bengala- como aquele homem se deixava estar por ali, sempre discreto, sempre a uma mesa sentado de forma desleixada, desajeitada e descuidada, sempre de camisa grossa com as pontas de fora da camisola e quase sempre de costas voltadas para a parede. Sempre assim. O corpo começava curvado sobre a mesa, depois ia-se voltando, ficando de lado, e a dada altura já tinha escorregado pela cadeira envernizada e a mão segurava a cabeça, uma cabeça robusta e redonda e de cabelos desalinhados e grisalhos a cobri-la, uma cabeça com um rosto definido e de rugas fundas, barba por fazer e rija, dois olhos cinzentos que olhavam o que iam olhando por olhar, ou realmente estariam menos atentos do que aparentavam e atentavam nos restantes, em amizades com as companhias humanas e alimentares. Quanto a si, quase sempre se deixava entregue apenas ao seu copo de cerveja, que nunca bebia até ao fim, alguém o notara uma vez. E quem dono dos cafés, não perguntava mais do que aquilo que já se sabia. E o marinheiro na ex-reforma nada também dizia por acrescento, nem sequer uma nova ruga se lhe desenhava por isso, talvez um completo alheamento a tal curiosidade fosse o que lhe pairasse na alma verdadeiramente.
E assim, com uma história comprovada e conhecida que se poderia resumir a duas linhas de uma coluna de jornal, se deixou de saber no primeiro dia do ano de 2002 mais alguma coisa desta presença regular, ainda que discreta e só notada pelos de maior frequência nas cadeiras e com tempo de sobra, e também com alguma visão atenta.
Contudo, o mais triste nem seria este dia de decisivo abandono ou desaparecimento deste homem tão curioso aos outros como tão pacífico e reservado.
O mais triste foi, meses depois do seu desaparecimento confirmado pelo tempo, quando já o próprio facto esmorecera pelo acontecimento em si ou quando só os resquícios do seu nome e título sobreviviam, aparecendo a seguir aos temas vagos de recurso “tempo”, “clima” e “lá por casa”, foi só então que se descobriu, por um qualquer parente afastado ou conhecido de confiança que veio limpar e vender a casa –falada e nomeada localmente por “velha barraca carcomida”-, que muitas histórias havia da boca deste homem escritas em papel, histórias que decerto, se alguém lhas tivesse pedido, certamente as teria contado, apenas e muito provavelmente com a mínima exigência de ser à noite e em volta de uma lareira, ao borralho, esquentado até mais pela atenção em volta e pelo copo ao lado.
Recriminaram-se alguns por não terem insistido em quebrar-lhe o silêncio, puxando a língua deste velho até muito bem conservado. Outros cedo esqueceram isso e do mesmo modo se debruçaram no testemunho legado ao futuro ou mais propriamente ao acaso.
Eram papéis intermináveis, folhas sobre folhas que se juntavam em blocos e formavam pilhas onde se seguravam prateleiras intermináveis com mil e um artifícios e ‘souvenirs’ artesanais que fizera e ali deixara, como tudo o resto, à excepção da sua presença em corpo e vestimenta.
De entre todas, havia uma bela história, com certeza autobiográfica, a narrar as aventuras e desventuras de um jovem oficial da marinha; este, segundo se contava, ter-se-ia apaixonado verdadeiramente num certo dia de Verão, depois de mil portos visitados e o triplo das viagens rendidas ao serviço da companhia; contudo, o destino ou a vida simplesmente em si, fora-lhe traiçoeira e trágica, e apaixonara-se o jovem oficial pela única mulher que, de entre milhares, viria a desaparecer no mar, fatidicamente, um ano depois de consumado o casamento de ambos, ocorrência esta suficiente e, segundo alguns, até justificável e sem repreensão, que levou então o jovem oficial a desistir da carreira de uniforme e a enveredar por um labiríntico rodopio de mais de 30 anos no mar a segurar a roda do leme pelo traço de rotas mercantes secundárias e perigosas tanto quanto a morte; Mediterrâneo, Atlântico e até o Árctico, sem contar a rotina pelo Mar do Norte... sempre a desafiar a vida, sempre no fio da navalha, e nunca, nem por uma só vez, o barco em que seguia se voltou, nunca mais de uma vela se rasgou, nunca um motor quebrou... após tal evidência aceite daquilo que o esperava, ou melhor dizendo, do que ele teria de esperar, afastou-se de todos quantos conhecia e foi encontrar, remotamente, um local calmo e pacífico, onde numa simples barca se deixou a apanhar peixe diariamente; aprendeu meia-dúzia de palavras da língua natal da sua nova casa (ahh!, exclamaram os naturais e os biógrafos quando deitaram pela primeira vez os olhos aos papéis com as histórias) e foi vivendo do pouco dinheiro do peixe seco que então já ia reunindo alguns adeptos, escassos fanáticos mas vários curiosos; com o tempo, a carne ficara mais balofa e envolta por gordura, e apenas nas arestas da face a expressão seca pelo sol e pelo sal se mantinha; a barba era sempre de dias; a expressão distante; a voz muda; enfim a figura desaparecera como aparecera.
Nas demais histórias incluíam-se, entre as que posteriormente foram traduzidas e publicadas, a de um caranguejo medroso e a de um cavalo marinho que saltava mais ostras juntas que qualquer outro, relatos de viagens, aventuras no mar alto (colocadas estas nas prateleiras temáticas das bibliotecas junto ao “Moby Dick” do Melville, o que decerto muito teria orgulhado ao marinheiro agora também autor misterioso) e também pequenos contos inacabados, outros refeitos e com finais diversos, alguma poesia, narrações desconexas, vários diários e muitas cartas, ainda seladas e deixadas por enviar.
Alguns desenhos e ilustrações deste misterioso estrangeiro, que preenchiam várias das páginas brancas e virginais na compra dos cadernos, foram também reproduzidas na tipografia local da vila, depois distribuídas pelas crianças, que as pintaram a seu gosto, e finalmente os melhores resultados expostos no salão da Câmara; daí, alguns seleccionáveis, entre dedicácias e pinturas de autores consagrados em homenagem à personagem misteriosa, seriam também reproduzidos, expostos e publicados, este último verbo apenas para uma dezena de entre os previamente escolhidos, a rematar a compilação com o aval e mecenato da Câmara, a celebrar as tradições piscatórias e marítimas da vila.
A verdade, no entanto, é que o desaparecimento de alguns homens, ao que parece, é rápido e instantâneo, quando de imediato se dá pela sua partida, como também pode ser presenciado e mantido por instantes mas sem se afastar do fugaz, situação em que o facto não passa despercebido mas também não ocupa preocupações, como pode ser nunca desprovido de mistério, tragédia e uma boa dose de romantismo, no caso de raros factos haver para explicar e descrever o enquadramento, sempre gerando portanto efabulações, dúvidas e várias versões para a mesma história incompleta, todas tão parcas de confirmação quanto recheadas de segredos, enigmas e até mitos, assim alongando-se no tempo.
As crianças, essas, aproveitam o que existe para sussurrarem aos ouvidos umas das outras, e sobretudo das mais velhas para as mais novas e pequenas, nas noites mais nevoentas e frias, que o marinheiro de lança à caça de baleias deixará o mar alto para vir à costa e bem depois bem dentro da vila espetar a lâmina e apanhar para si o primeiro desgraçado, afogando-o em seguida e sem piedade, voltando depois sedento para os indesejados, os amedrontados, os que chorarem ou gemerem nem que baixinho debaixo dos lençóis.
Os pais deixam as lendas levitar e vaguear com sorrisos nostálgicos.
Os mais velhos de todos, de mãos nas coxas e bengalas, voltam a repetir os mesmos relatos sobre “O Marinheiro Ex-Reformado”, agora já nomeado como “Marinheiro Desaparecido”, que a excertos colados aqui expus neste primeiro dia do ano de 2002, quando vão já começando a circular moedas novas pelos dedos das mãos de todos, pelos balcões ora sujos ora limpos, pelos bolsos mais pesados.
Distantes de tudo isto, a apenas alguns metros, na areia da praia, as gaivotas vão levantando voo.


(escrito em 2002.01.01)