Friday, January 14, 2005

Chamam-lhe "amarelo"

o título de cima foi só para te chamar a atenção.
se estás aqui a ler esta parvónia, deu resultado.
ainda bem.
a sério.
olha que as linhas deste compêndio até nem são más de todo.
podem não te ajudar a resolver os dilemas existenciais ou sequer fazer decidir sobre o aborto, mas são fixes, são do melhor que há no mercado, de certa forma uma 'piéce de resistance' com garantia de evitar maus agoiros e promover o bom ócio.
seja como for, o amarelo é o tema, e aqui está porque às vezes tudo descamba!
o tema!
porque tem de haver um tema?
porque sim.
foi, pelo menos, o que me disse o Fintas.
o Fintas é um puto que eu conheço. é um puto baril. um bocado desajeitado à bola; mas claro que a gente não lhe diz isso assim de boca; mandamo-lo para a baliza e ele anda todo satisfeito a levar com os balázios do Magala.
o Magala tem 14 anos mas já parece que tem 20; deve sofrer de gigantismo; disso e de embrutice aguda; diz sempre que faz anos a uma sexta; já lhe tentei explicar que o que conta é a data, não o dia da semana em que nasceu, mas ele não entende mesmo...
seja como for,
posto isto,
ora bem,
de qualquer modo,
a.k.a. "inversão abrupta do tema de conversa",
o que conta mesmo é que hoje vi um carro amarelo canário.
é raro.
acho que ainda só tinha visto três na vida.
este era um Lotus Elan.
o que explica muita coisa...
a maior parte dos Lótus Elan saíram amarelos.
este também.
ia um gajo do outro lado a rua e pôs-se logo a gritar: amarelo cabrão f-d-p****!
fiquei a pensar naquilo...
há gente mesmo curiosa.
devem trabalhar numa fábrica de tintas, ou coisa parecida.
sabem de cor todos os nomes das cores.
nesse campo só sei que os cortinados lá de casa são branco marfim.
já é alguma coisa.


(escrito em 2004.09.01)


Wednesday, January 12, 2005

Chamam-me Rui Jorge dos Santos Carvalho

Nem é como eu me chamo. Ou melhor, não é como eu me tenho ditamente visto sob entidade consciente; não é a minha imagem alfabética e verbalmente sígnica, diriam os semiologistas ou sistémicos... não me lembro qual deles o mais correcto aqui para o caso.

Mas, pelos vistos, o que aqui importa neste tempo (e concomitantemente nesta sociedade) é o valor e a sentença ditados pela maioria, ou pela média. Seja como for, nós mesmos nunca temos a palavra.

Por muito que eu fale e reclame, por muito que me possa orgulhar ou me seja indiferente, é um facto inegável de que o nome inscrito no título é mesmo o que vem no meu B.I. bege pálido, selado a branco e revestido a plástico duro, tal e qual, com a minha caligrafia na assinatura, sob a foto, na frente, e escrito à máquina no verso. A legibilidade do segundo caso é evidentemente preferível por todos os que consultam o documento.

O "dos" no meio do nome custou-me, certa vez, um regresso a casa, desde o centro da cidade, e novo retorno à baixa, no dia seguinte. Tudo porque ao preencher uns papéis para o serviço militar mo não tinham posto. Pediram desculpa, mas disseram que isso fazia muita diferença. Aliás, toda a diferença. E não aceitaram os papéis. Subiram ainda o sobrolho, torceram um pouco os lábios e de olhar afiado revistaram-me perscrutadoramente e afincadamente dos pés à cabeça. Felizmente nem estava muito mal vestido. "Era absolutamente necessário que eu preenchesse novamente os papéis". Finalmente soltaram todas as amarras que esticavam a tensão dos músculos, baixaram de novo o olhar sobre os papéis pousados na mesa e exprimiram apenas a verificação de um problema evidente à sua frente, um problema bicudo e quase irresolúvel, um caso difícil de ultrapassar a verificar-se a minha insistência negativa à proposta, definitivamente caótico se executada a minha acção de avançar com o documento tal como se apresentava, "ainda mais sabendo eu, em plena consciência e esclarecimento da situação e dos factos, do que se estava ali a passar".
E nisto lá fui saindo, quando se preparavam para fechar.

Voltei no dia seguinte com novos papéis preenchidos e o "dos" carregado em três passagens de caneta, para que a quem fosse tratar daquilo não lhe passasse despercebido à vista. No fim, pelo menos, recebi de volta um sorriso simpático pela minha cumplicidade e subserviência prestada. Achei que aquilo tinha sido uma qualquer prova a que eu acabara de passar com distinção, e fui-me embora...

Contudo, nem sempre sou estas 25 letras... ou melhor, estas 25 letras e 4 espaços por esta ordem. Por vezes gosto de baralhar tudo, mesmo comigo, tal como acontece com os papéis que vou deixando espalhados sobre a secretária. Assim igualmente com o meu nome: d-R-v-g-a-r-o-s-J-o-s-d... Bem vistas as coisas de longe, o caos gerado acaba também por gerar alguma reflexão filosófica de quem não tem mais nada de interessante para fazer. Mas basta ir buscar o pano do pó para reorganizar tudo pela ordem convencionalista das coisas, tal como faço com o meu quarto, de 15 em 15 dias, ou quando calha.

O que não deixa de ser uma ideia curiosa é esta de arranjarmos o nosso nome tal como arranjamos o nosso quarto, tal como mudamos a água ao aquário ou cuidamos de uma planta ou lavamos o nosso cão...

Contudo, por vezes é-me permitido deixar o campo das letras e ter o privilégio de possuir um número só meu. Sou então o 102689969. Tenho outros números, mas dizem-me que este é o mais importante. Chamam-lhe "número de contribuinte". E creio que uma grande parte das pessoas não o nota, mas a designação ecuménica, desde logo, presume que vamos contribuir com alguma coisa. Talvez seja por isso que o tornem indispensável para qualquer coisa, nos dias de hoje. Pelo menos todas as instituições bancárias e repartições do Estado o pedem.
Eles lá sabem.

Ainda assim, eu gostava de ver o dossier assinado pelas partes que elaboraram e autorizaram e selaram o aval do cartão. Mas o que eu gostava mesmo era de meter conversa com a rapariga da frente. Pergunto-me qual seria a reacção dela se eu neste momento simplesmente desaparecesse.
O caos planetário?
O país com os noticiários à minha procura?
E tudo desvairado como uma mosca em piruetas, até a miúda deixar a barra de chocolate e perguntar à senhora do lado "De que estão a falar?" ou "Que se passa?".
E o que é que a senhora lhe poderia dizer!?
-Olhe, parece que desapareceu o 102689969.
Ou então:
-Olhe, parece que ninguém sabe onde pára o Rui Jorge dos Santos Carvalho.

Mas o mais curioso é que se eu fizesse desaparecer toda e qualquer nomenclatura e referência simbólica minhas, como saberiam quem procurar!? E se apagasse mesmo de todos os registos fotográficos a memória do meu rosto?!?
-Boa noite. Desapareceu, hoje, alguém. As entidades envolvidas na busca do indivíduo ainda não sabem quem ele é, apenas que desapareceu. Os pais todos do país choram e estão em pânico, porque ninguém sabe se se trata de um filho seu. Para além dos pais, a generalidade dos portugueses aguarda com impaciência, e sem por de lado o inevitável choque, de saber de quem se trata; se alguém das suas famílias ou grupo de amigos, ou simplesmente um desconhecido. A Polícia de Segurança Pública, a Guarda Nacional Republicana e, até mesmo, já um elemento da Secreta Portuguesa, vieram afirmar que, em princípio, não se deverá tratar de nenhum indivíduo perigoso. As empresas, nacionais e estrangeiras, lançaram o alerta, e dá-se agora uma corrida contra o tempo para verificar todos os relatórios de presenças dos últimos dias, na busca de alguma ausência, ainda que tal tarefa de pouco valha, pois todo e qualquer registo da pessoa desaparecida teve esse mesmo destino, e procurar uma coisa que não se sabe o que é torna-se, portanto, uma tarefa inglória e destinada ao fracasso logo à partida. A certeza, essa, é só uma: alguém desapareceu, e não fui eu.

Seria engraçado, para aumentar o tom caótico e estapafúrdio da situação, se nesse preciso instante a electricidade fosse abaixo e a emissão desaparecesse. Mais ainda se fosse noite e toda a gente ficasse às escuras. Creio que, nas suas casas, abraçados pelas quatro paredes de suas salas ou quartos, os telespectadores ou radiouvintes ficariam primeiro estarrecidos num sufoco abismal e apavorado, posteriormente rebentando num pranto alongado e histérico, berreiro digno de ser registado em banda magnética. O digno sangue-frio que se dispusesse a ir buscar, calmamente, o aparelho gravador ao seu armário, e que gravasse em qualidade estéreo o grito geral, à medida que fosse passeando pelos corredores dos prédios e até pelas ruas, poderia depois de todo o alarido lançar um álbum, quem sabe, intitulado "Crying for Disappearance Suite in Si Minor". Claro que depois, como faixas extra, em oferta aos fãs, estariam a "Improviso em Martelo Pneumático" ou mesmo a "Sonata em Telemóvel Sem Bateria", esta última uma faixa experimentalista onde um imenso silêncio poderia ser ouvido durante alguns escassos segundos. Quanto ao sucesso da primeira faixa extra, ele em muito dependeria do tipo de terreno (perdão, palco) em que (onde) se executaria a obra (perdão novamente: peça), bem como a marca do martelo (dito instrumento) e até da força do seu operador (artista).
Quanto a mim...
...quanto a mim...
mim
Uma palavra capicua que em português é excelente para o que designa, porque não cessa um constante vai e vem que, profundamente e fundamentalmente, é isso mesmo que simboliza: uma pergunta-resposta, mas sem resposta, a responder-se com perguntas, sem fim: <-> m <-> i <-> m <-> i <-> m <-> i (...)
mim
E daí?
Será que o país e o Estado e as empresas ficariam mais descansados depois de descobrirem o meu nome?
Certamente ficariam.

E ficaria mais esclarecida esta miúda com a sua barra de chocolate já no fim?
Talvez um bocadinho; quase como o resto da barra que vai agora termin... não, guardou-a no resto do plástico; ou já estava enjoada; ou talvez seja um ritual...

E nisto, acredito veementemente e finalmente que pelo menos alguma coisa significaria se a senhora do lado lhe divulgasse que o rapaz (dica X) desaparecido se considerava um discípulo de Sócrates quanto à sua nacionalidade (dicas Y e Z) e que gostava de rosas e margaridas (dicas V e W) e que o azul era a sua cor preferida (dica R), sendo que uma das suas paixões era viajar, outra ouvir música e outras ir ao cinema, estar com os amigos, conversar sobre tudo menos coscuvilhices, ler e escrever (dicas A, F, D, P, Q, K e S). Seria uma combinação que elegeria da massa amorfa da sociedade tanto esclarecimento quanto dizer que o meu nome era Rui Jorge dos Santos Carvalho e o meu número de contribuinte 102689969. Contudo sempre daria um esboço mais simpático e imaginativo, obtendo mais pontos pelo romantismo despertado e pelo tempo ocupado a traçar um retrato-robot. Ou seja, sempre seria mais qualquer coisa, e alguma coisa mais interessante, ou quem sabe do total com algumas coisas interessantes e certas coisas desinteressantes, sendo outras coisas completamente dispensáveis e trocáveis por qualquer outra coisa comum com as coisas dela. Resumidamente: daria para emitir uma opinião, nem que escassa e mal baseada, mas sempre uma opinião.

Mas o que importa retirar desta minha odisseia será, talvez (perdoe-se-me o abuso convencido e chato) uma coisa: que eu me chamo o nome que me deram, o nome que todos os dias me lembram, o nome que eu sou obrigado a dar para não gerar confusão nos outros e até em mim; mas ninguém me chama ainda o nome que eu gostaria, e a razão, essa, é simples, difícil ou impossível de resolvê-la eu por mim mesmo, e contudo leve, serena na imagem e situação, pois que é apenas porque a cama está vazia e, também, por outro lado, as gavetas cheias.
Contraditório?
Confuso.
Talvez... mas eu digo que nem por isso, só à primeira vista. E quem sabe, talvez seja mesmo por ela que as duas situações vão tendo pouso fixo...
Nisto termino e assino:
-o próprio.

(escrito em 2002.04.27)

Chamam-me "nada"

Eu já os ouvi. Por aí. dizem-me bom dia e boa-tarde e boa-noie e olá. E. Dizem mais. Que me importam. O Xavier já por várias vezes que me vem com a mesma história. Fernando, estes são... Não quero saber! Já lhe disse tantas vezes. Não quero saber. Para mim são números. É tudo números. Não foi de outra maneira que cheguei aqui. É um cargo importante. Director. Director da contabilidade desta empresa. Fernando Negrão. Director. Está lá escrito. E quero lá saber que me chamem os nomes que certamente me chamam. Sou o que for preciso para que as coisas corram bem. Chamam-me um número também. Chamam-me zero. Menos que zero. Nada. Inexistente. Pois então que saibam. O que lhes aconteceu. Vem do nada. Deste nada. À merda. Todos. Tudo gente mesquinha. Quem precisa desta gente.

Já os vi para aí a apontar. Apontam quando chego. Só porque tenho um Porsche. Eu não ando para aí a gastar dinheiro em casas nos subúrbios. Ou em creches. Ou em férias no Algarve ou no sul de Espanha. Eles que se marimbem se eu vivo com a minha mãe. Quem têm com isso. À merda. Digo-o. A todos. Quem quiser ouvir. Mas não eles. Já disse ao Teixeira que me mando aos ares quando me vem espicaçar com aquelas tretas de aproximar os trabalhadores... Às favas com os cursos na América. Tretas. Uma empresa funciona é com atitude. Maricas. Andam-se a comer uns aos outros e já não se pode fazer nada. Antigamente havia maneiras. Hoje torna-se difícil. Há quem faça de tudo para subir.

Meto a gravata com o nó apertado.
Gosto assim.
As camisas brancas.
Sou alto.
Gosto de mim.
Gosto de pentear-me assim.
De puxar e realçar a testa.
Sou egocêntrico.
Sou mesmo.
Aprendi a gostar de quem sou. Acho que não aprendi, aliás. Já sou assim. Assim. É assim mesmo. Não há cá naturezas a mudar. Cada um é como é. E as balelas de reconversões de quadro de pessoal!!... Mas alguém que andava na DRH vai-me agora fazer o quê para o Marketing. Eu não dou dinheiro a merdas dessas. Querem gastar dinheiro. Então que gastem com o que deve ser. Com profissionais como deve ser. E há por aí muito bom estudante. Saem das faculdades e sabem o que fazer. Não reclamam porque lhes pedem mais horas para fazer as coisas. Todos uma cambada de Cubistas. Passam a vida a deformar a realidade. Todos uns líricos. E aquele merdas do Teixeira... eu já o percebi há muito tempo. Sei muito bem. Ele e o outro...
Mãe.
Sabes...
Mãe...
Sim.
Podia falar com o Francisco Palmela. Ele...
Sim...
Eu sei, mãe...
Ela tem razão... Não vale a pena. Um dia destes damos um jantar cá em casa ao Castro de Melo. Ele já sabe como é. Falamos e a coisa resolve-se. Mais ano menos ano.

Escusam de me olhar.
Porque insistem em dizer-me bom-dia!?
Já sabem que não respondo!
Irritação logo de manhã.
Os genes deram-me um metro e noventa de altura mas mesmo assim esta gentinha continua a querer chegar-me às suíças. Cambada...

Luísa, passe-me o Sintra Ferreira e diga ao Vasco Preto para me trazer o relatório semestral de contas. Isso rápido. Mande entregar também uns cafés.

Todos os dias a mesma porcaria. Lá estão. Outra. E outra. Outra vez a chegar-me cartas de... Chiça! Merdas de reclamações. Já deviam saber. Ainda há gente. O que é que lhes alimenta a esperança!? Deve ser o desespero. Gente pobre. Que miséria de gente. Cambada de abutres. É o que são. A gente dá-lhes um por cento. Reclamam logo que mereciam três. E ainda se. Então não podem combinar? Receber dois? É o que eu digo. O melhor é não lhes dar. Nada. É para ver se se acalmam um bocado. Baixam a bola.

Já vim a saber. Não é casado. Isso explica tudo. Ele deve ser...
Deve ser...
Deve ser...
Deve ser...
Ele deve ser...
Põem-se para ali com conjecturas e devem seres...
Deve ser...
Sabem eles o quê?
A maior parte desta gente nem numa faculdade meteu os calcantes, quanto mais as botas sujas e de napa com que andam todos os dias!
Gentinha...

Vou propor ao Sr. Administrador que façamos um corte nas despesas de formação. Para quê? Já é o terceiro ano. Acho que esta merda é só para os directores andarem para aí. A limparem. As botas. A uns quantos! E ainda virem receber por fora. Aposto que se fizéssemos uns testes... A maior parte dos funcionários não aprendeu nada. E se aprendeu, já esqueceu. Cambada. Incompetentes. Safam-se trinta por cento. Ou menos. Ainda. Hei-de provar isto. Esta empresa e a maioria. Fazia-se com trinta por cento. As pessoas certas. Nada desta corja. Cambada de ovelhas preguiçosas...

Tenebroso. Maquiavélico.
Ele deve ser...
Eles sabem lá.
Amanhã mando-me para a Quinta das Vidigueiras.
Eles que fiquem com os subúrbios.
Só pedia que se calassem.
Até recomendava um aumento das despesas com pessoal.
Se se calassem.
Se parassem.
De uma vez por todas!
Se parassem de uma vez por todas de me dizer bom-dia.
A merda do bom-dia!
Baixem a cara. Olhem os atacadores das sapatilhas. Metam-se nas vossas vidinhas de miséria. Piquem o ponto. Trabalhem as horas a horas. Ofereçam cafezinhos. Entre vocês. Felizmente eu ainda tenho boquinha para os mandar vir.
Agora, com licença.


(escrito em 2004.10.21)

Thursday, January 06, 2005

Chamam-lhes "meninas"

Mulher. Mulher? Mulher. Menina. Todas meninas de rua. Putas. Magras algumas. Gordas. Coxas grossas nuas. Calções brancos de bainha para fora. Gangas. Um casaco de pele falsa. Nas ruas. Ao frio. Encostadas a um poste. Sob o telhado de vidro de uma paragem de autocarro. Amparadas umas às outras. Em fogueira. Em conversa. A sós numa esquina. Juntas à espera entre ‘chiclets’ e cigarros e experiências trocadas. Botas altas. Sandálias de tiras. Tops de alças. Camisolas encolhidas na máquina. Soutien de renda e mais nada. Boca vermelha. Boca rosa. Boca brilhante como os pneus de um carro novo no stand; não como os carros que param. Cabelos compridos à solta. Cabelos lisos curtos. Loiras. Morenas. Sotaque daqui e dali. Portuguesas. Estrangeiras.

Mulheres, meninas e putas com gordura para todos os gostos e dietas, vestidas cada uma com sua própria e única fantasia diária de pé pelas ruas, em conversa ampla ou em surdina, sempre à espera, cabelos ajeitados com dois dedos para o lado, olhos desviados por mais de dois segundos de contacto, silêncio.

Há conversa? Quanto levas? Que é que fazes?...
Nem uma palavra do batom carregado de vermelho.
Julgas que és mais que as outras!? Puta convencida! Levas onde levam todas!
Mais uma hora que passa. Às vezes aviam-se dois de uma assentada em 15 minutos. O dobro para sua despesa. Depende da hora, da época, da zona...
Os semáforos carregam-se de vermelho. Alongam-se. Os olhos.
Fábricas de sonhos.
Produção industrial.
Foi-se o luxo da imaginação.
Carne por carne.
A solidão o mal do sec. XXI.
...

E tu?
Ela volta-se. Olha.
Quanto é? Quanto levas? O que fazes? Onde? Depende. 5. 50. 35. Ou mais? Tudo? Quente. Tua. Onde quiseres. Não quero. Não queres. Vai-te embora. Esquisita. Esquisito. Decepção. De longe parecia. Nem aqui.

Até as putas já se dão ao luxo de escolher trabalho. Pagam-lhes demais. Têm o nome. Audácia. Experiência. A mais velha do mundo. Onde têm a carta de referências? Não há escolas? Nos bordéis pagam para lhes ensinar as várias maneiras? Precisam de cobaias para praticar?
Há mais por aí.

Metes-me medo...
E contudo é Inverno.

Uma brisa varre rente ao chão. Cimento gasto e gretado. Corta as pernas até à micro-saia. Rasga os lábios encapados de batom. Enruga a pele coberta de base. Chora os olhos. Choram os olhos. Um poste de luz é um abrigo.
Linda menina!
Ela desvia.
Ele passa e desaparece com a luz verde.
Mais à frente
-que fazem aqui a esta hora?
-esperamos o autocarro, sr. agente!
Riem-se todas. Sempre o mesmo. Logo ele passa. Já conhece a história. Dizem que faz parte dela.
Risinhos. Escárnio. Cuspo. Garrafas atiradas de passagem rápida e vidros baixados. Gritos. Urros. Bebedeiras. Ares de fastio. Ares de inveja. Ares cúmplices. Fantasias. Tudo depende da hora; há fases. A época também. Mas é mais o dia. E a zona. A acabar distribuem-se sempre pastilhas a dobrar. Morango preferidas. Mentol também.
Música nas alturas e alguém a lembrar “La Puta Cabra! La Puta Cabra!”
Elas percebem. São putas. Não são burras.
-Cabrões filhos-da-puta!
-A minha mãe não te conhecia!
-Mete-lho acima para ver se ela se lembra, cabrão de merda!!
-Suas puutas!!
Cada um faz pela vida.
Cada um faz a sua vida.
Cada um se faz à vida.
Cada uma faz a vida.
Faz-me agora.
É uma de 100.
Está bem! Despacha-te, minha puta! Isso! Assim... Assim... Põe-te agora em cima! Toma mais 50! Vá, anda, despacha-te lindinha!
Por trás, jóia! Duas de 20. Não dá, amor? São das antigas, querida! Ah, agora já cantas! E também falas ao microfone? Isto serve-te, não serve? Já sei que não podes falar...
...

Nem todo o que chega sai com companhia.
-Rai’s te fodam, grande puta!
-Vai meter pilhas dentro, filhinho!
-Ainda hás-de vir chuchá-la de graça!
-Põe-t’andar, cabrão! Vai meter o caralho na cona da tua mãe!
-Vim agora da tua! Ela é que te recomendou!
-Circula, cabrão! Vai bater uma!
-Vai tu circular essa cona p’rá piça do teu pai, grande vaca!
Arranca.
Acaba.
Recomeça.
Risada.
Rotina.
Noite e dia.
O silêncio mama da noite. Prédios de olhos fechados. A lua muda. Uma ou outra sirene relampeja mas nem discute porque nem pára. Até à noite o tempo escasseia. Até à noite que vem. Até de dia. Até amanhã.

Mas agora ainda dura. Pela mata ou pela rua. Esquisita? Desesperada? Ainda nula? Dependência? Ninfomaníaca?

Dá-me uma enquanto metes uma dose comigo. Pagas? Está incluído? E se houver outras? E se houver outros?... Por cima. De lado. Em pé. Deitada. A cavalo. Engoles? Ver-te com outra. Vais com dois? Metes duas na mesma? Mete-a toda na boca? Chupa. Lambe-a toda. Aqui no carro. Em minha casa ou na tua. Em frente a um espelho. Despe-te. Bate-me uma. Veste isto. Salta! Levas estaladas? Bate-me com força. Meia-hora. Chibatadas? Dás ou levas? Fode-me até ficares toda fodida! Pedrada! Dormes lá? Para um filme. Deixas-te ser gravada? Fotografada? Lambida? Mijada? Faz um strip. Mais 3 notas. No cu? Sem preservativo. Sem preservativo? Com preservativo. Aguentas mais no pito? Ao mesmo tempo no cu e na rata! Vem-te! Vem-te agora! Geme. Grita. Quem manda? Diz quem manda! Puta! Agora em cima da mesa. Agora em cima da banca. Um 69! Deita-te na cama! Estica-te no carro. Mete as mudanças dentro do pito! Uma rapidinha aqui na mata. Põe-te lá fora!
Morta.

Encontrada morta, ontem, “menina da rua”, vista pela última vez na zona da praia da desgraça, junto ao bairro fácil e perigoso, pelas 2 da madrugada.
Chama-lhes meninas... Sabem mais que a avó da humanidade inteira!
Putas!
Coitada...
Drogada.
Esporrada toda ela.
Porrada nela enquanto levou nela. Durou quase duas horas.
Autópsia: violada, espancada, morta, basta.

Mas a rotina retoma.
Chega a noite, abre a loja, e outras coisas.
Quase todas iguais. Umas mais fufas que outras. Umas mais esquisitas que outras. Em saldos umas. De luxo outras. As razões confusas. Um carro das notícias à espreita para fazer uma reportagem. Elas vêem-no. Fazem que não vêem. Entram no primeiro carro e dali a minutos vêem-no. Regressam ao mesmo sítio. Dinheiro escondido. Um susto ou nada demais. Gozo. Piadas e coscuvilhices desta e daquela. Um trabalho como os outros. Quem tem sorte são aquelas putas estrangeiras! Passam o dia a dançar e a bater punhetas. Moedas a cair para deslizar as janelas. Lenços de papel nos baldes ao canto. Música ‘techno’ aos pulos abafada. A voz a anunciar a número 4 Andrea para fazer companhia à 2 Laura. Cabines repletas. Alguém tem de se contentar com as cassetes de vídeo. A estas chamam-lhes as putas do peep-show. Algumas transsexuais? Algumas elas que foram eles? Feias ou bonitas, todas tiram a roupa mínima. Como se fosse coisa do outro mundo. Os espelhos facilitam e prolongam a vista. Privacidade nenhuma. Olhos nos olhos. O tecto a rodopiar a távola vermelha. Se duas, quase pára. Um sorriso repetido sempre da mesma forma. Os mesmos gestos copiados. Lá chega uma nova. Genica. Que língua fala? Desaparece por trás da cortina. Novo lenço na távola, nova cara, nova coxa, nova rata, carteira vazia. Rua fora.

Quiosques repletos de capas. Playboy. Penthouse. Clímax. Peles lisas. Bocas bem desenhadas. Seios firmes. Esculturas rapadas. Desenhos artísticos. Há pouco duas tinham celulite, quando mais se mexiam. Uma estava com pele de galinha. Outra tinha um penso rápido numa mama. Acabada de passar a lâmina há minutos noutra; pele sensível. Duas grandes borbulhas vermelhas, uma em cada nádega. Do sensual ao serenamente cómico.

Mas se a noite se prolonga, só a mentira fica pronta, e de gala, junto à fantasia.
Imagens pixelizadas de bocas pulposas com as línguas de fora ainda a pingarem leite. Fontes de mamas espalhadas pela cidade escura e obscura. Cada carro uma boleia para as estrelas. Abertas as braguilhas da sociedade, baixadas as calças, levantadas as saias, abertas as pernas... somos todos a mesma criatura?

O romance ficou à porta.
Quem escrevia cartas às meninas? Quem visitava os bordéis às sextas-feiras e aos sábados? Quem tinha uma fixa? Quem pagava mensalidade? Quem sabia a história de todas?
Como te chamas hoje?
Que te interessa? Sónia.
E tu?
Não é da tua conta. Paula.
Queres chamar a tua amiga?
Quem, a Sandra?
...

Todas sónias. E sandras, e martas, e paulas, e anas, e algumas com nomes estranhos de letras em ordem confusa, e sempre de muito poucas palavras. Depois refinam-se. São susy. São dany. São eleide. São mary. São caty...
Mas para quê, se vais ter a boca cheia!? Entra. Toma, guarda já. Tens meia hora. Chega. Vai-o chupando enquanto bates uma. Isso. Isso! Espera. Ah, é tão bom! Tu és tão bom, querido! Excitas-me toda! Ah, puta, isso... chupa-o todo... Tão boa... Fode-me, querido, fode-me toda. Queres, não queres? Já levaste com ele na cara agora queres levá-lo na cona! Abre-te toda, minha puta! Isso, isso... Ah, isso, mete-o todo, querido! Enterra-mo na cona! Põe-te de lado, para te ir por trás, minha puta! Ah, tão boa... ah, tão boa... Toma, é isto que queres? É, não é!? Sim... sim... Diz mais alto! Sim! Já estás a gemer? Ah, sim, sim! Ah, fode-me toda! Isso, fode-me toda! Puta! Ai, meu Deus! Ah, sim, sim, sim! Entra-me! Enterra-mo! Fode-me! Anda! Fode-me a cona toda! Fode-me toda! Anda, garanhão! Anda, querido! Vem-te na minha rata! Deita cá para fora essa esporra toda! Ah, puta de merda! Boa!... Anda... Toma... queres levar nela... Sim, mais! Mais! Enfia-o todo! Enfia esse mangalho todo e esporra-me a cona toda! Não, quero-me vir na tua cara! Estás-te a vir!? Quase... Estou quase... ah, minha puta, toma, chupa-o e engole a esporra toda! Encharca as mamas! Espalha-o todo! Isso! Isso! Ah!... Mmm! Isso, isso querido! És tão forte! Isso, querido... Mmm...

De volta tudo ao sítio.
Ao bocal de partida.
Ao local de chegada e ida.
À Sida?
Paciência...
No fim é tudo sobre quem quer e quem paga.
Só.
Farsa palhaçada?
Quem sabe de que se fala?
Só se conhece quem actua - loira, morena, mulata, asiática, brasileira, eslava, baixa, alta, magra, esguia, gorda, mamalhuda, escanzelada, doente, bonita, horrorosa, pintada, porca, de cá, de fora, desta zona, do chulo x, por conta própria, só para pagar a escola, esta é de graça, para a droga, para a roupa, como uma esponja, só quando precisa...

Alguém encontra de manhã uma prova?
Impecável limpeza.
A polícia.
Como a outra, na praia...
Boleia para a aventura. Mais uma nota, mais uma viagem. Mais uma dose.
Droga de vida, a vida para a droga. Comida e roupa lavada ou renda.
Chamam-lhes meninas, mas já são crescidas.
-Antes isto que lavar escadas.
-E quem me paga a casa?
-Quem me dá a sopa?
A mais velha companheira da rua.

Conhecem-se quase todas. Batem as zonas. Ficam-se por uma. Respeitam-se e odeiam-se. Comadres e concorrentes. De luxo barato a baratas. As grandes companhias valem hotéis pagos à diária. Algumas são estrelas. Algumas casam mesmo com eles. A maioria é como em tudo o resto o que é a maioria, fica-se pela maioria e fica-se pela média.

Quem as vê na rua, se é homem, levanta a cabeça e sonha, depois deseja, depois pensa e continua, com a cabeça baixa; se é mulher levanta a sobrancelha e desafia, dando o braço a quem tem ao lado, e nem desconfia...

Algumas nem se reconhecem quando nos vendem o que vendem na loja de dia, enquanto dobram a roupa, enquanto embalam ou enquanto fazem o que fazem, das compras na mercearia à discoteca.

Pelo meio, no fundo ninguém se conhece mesmo, mas vale sempre mais a pena compor a personagem, trocar a calça pela saia e a discrição pela cor garrida.

Eles, alguns, têm de passar na lavandaria longínqua para tirar uma marca rosa da gola da camisa. Mas se a coisa escapa na miopia da chegada, e se é vista pela que vive a vida (não a da rua), também não há problema:
-Ora essa, amor, foi só uma menina.

(escrito em 2002.02.17)

Monday, January 03, 2005

Chamam-lhe o "Vela Azul"

Chamam-lhe assim porque, quando para lá foram os que o compraram (os nomes dos ditos perderam-se no tempo) já assim se chamava.

Montra de vidro com toldo de pano cá fora, azul. Bolos a ver a malta a vê-los sobre guardanapos montados sobre um pano, azul. Sobre as mesas, de madeira escura e risca, azul, as toalhas quadradas de papel, branco. Estampada no vidro da porta entre aberta e fechada, uma dessas toalhas, furtada ao seu destino inicial e violada a marcador, azul, claro, e crucificada com fita-cola, bem virada para fora, o sol empinado a enviar uns quantos descendentes raios para ver o que está escrito cá em baixo.

Mas não é romance algum, apenas a ementa do dia sem grandes histórias nem tempo para romances, e quem quiser que entenda:
-Pratos do Dia: fêveras grelhadas, bacalhau há Braz e frango cosido / Acompanhamentos: batata frita, arroz branco ou arroz de ervilhas, vinho da casa, refrigerantes vários, agua com e sem gaz.

Não há que enganar.

Mesmo assim nem toda a gente lá entra. Ou melhor, entrar entra, mas ficar não fica. A selecção é natural e rápida, sempre baseada na cara de quem lá vai e no subsequente orçamento divulgado ao visitante pela obra que lhe será servida para ser devorada de seguida e sem demora, que ali é local de comida rápida e não de fazer sala.

Cliente habitual, recebe uma lista, com nota em cima a dar conta dos pratos do dia a 5 euros e os restantes com mais 2 em cima. Para o visitante comum é entregue outra lista, bem devidamente camuflada por fora mas recheada no seu organismo interno desfolhado pela mão estranha com notas de prato do dia a 7 euros e com mais 2 para o resto. Ciganos de mau aspecto (que o mesmo é dizer que para o Vela Azul são todos os ciganos), pretos a falar alto ou de modos bruscos ou então pretos que não venham com algo sujo de um qualquer trabalho, bem como velhos caquécticos, incómodos e esquisitos - segue diferente lista, com a nota dos pratos do dia a ascender aos 8 euros com os normais 2 a aumentar sobre os restantes pratos constantes da carta.

E se, por algum acaso, ou por distracção do empregado ou esperteza de quem topou o esquema, duas listas são vistas e a discordância notada, não faz mal, que para além da arte da cozinha no Vela Azul todo o empregado tem bem temperada a língua e sai logo para o balcão:
-Mas que merda é esta, ó Joaquim, misturaste as listas de ontem com as de hoje!? Vê lá onde pões a cabeça!

Mas quem se diverte com isto tudo, no fundo, não são os empregados do Vela Azul, que para eles é tudo rotina e negócio, parte do trabalho, como a seguir vem servir cafés e depois limpar a mesa, para além de chatear a alma a quem por ali passa na sua desgraça.

No meio de tudo isto, o gozo vai para os ‘habituées’ que ali comem todos os dias, que observam de longe as almas penadas pousando em total desconhecimento e nunca mais voltando. Só os desesperados, ou completamente ignorantes, ou os de grande carteira ou mesmo de língua calejada é que vão ficando, até se tornarem gente da casa e perceberem que não vale a pena perder tempo a ler a ementa, porque no Vela Azul é certinho, peixe ou carne, vaca ou galinha, com legumes cozidos ou salada fresca, nada importa, sabe sempre tudo ao mesmo, o óleo é raramente mudado, o arroz com o repetido refogado, a salada com igual tempero, e as reticências para fazer valer isto para tudo o resto...

Perguntem ao Sérgio.

Empregado de longa data, há quem discuta se o grau de disfuncionamento do Sérgio é tão elevado quanto o do estabelecimento, ou se tem um problema de ouvidos e nervosismo crónico (caso este último irónico para um tipo a trabalhar num sítio que serve cafés a toda a hora e de onde tira a cada 10 um para ele de borla). Porque entenda-se, o Sérgio não pára quieto, e mais do que isso, não deixa ninguém comer descansado. O que vale é que é tamanho o descalabro que quem lá vai comer já se diverte com o espectáculo. Pede-se o peixe frito, mas o Sérgio é quase certo que traz ou arroz de pato ou frango assado com batata pala-pala.
-Ó Sérgio, não foi isto que eu pedi...
-Deixa lá, isso também está bom. Come na mesma!


É mesmo assim que responde, logo mirando concentradamente a televisão no canto superior da janela ou voltando costas e não voltando em pessoa inteira senão quando menos se espera e menos é preciso... aí por volta do princípio do fim da refeição. Porque se alguém cai no erro de pousar os talheres, é num gesto rápido, matemático e perfeitamente bem executado que a mão direita de dedos compridos e fortes do Sérgio dança um arco silencioso, afundando nos últimos instantes as pontas por sob a travessa e o prato - qual águia levantando nas garras aquilo que o cliente pode bem ter já acabado como pode nem ter sequer chegado a meio. E de pouco adianta resmungar, que lá adiante já segue o Sérgio. Só resta subir a voz e pedir o que falta e foi raptado em tempo indevido, mas com a certeza de que para trás não virá o mesmo prato; quem sabe, agora sim o peixe frito.

O melhor mesmo é assumir a faca como o sexto dedo de uma mão (ou o garfo, para os mais económicos de ferramenta) e não a pousar senão com a certeza de ter terminado. Depois, sim, nem é preciso chamar pelo Sérgio, que ao mínimo voltar de crânio e atenção visual para outro lado nem se dará pela rapina - na mesa já nada resta da comida servida ainda há pouco.
-Sérgio!... É pá, então mandam-me isto com uma barata esturricada na travessa!?!

O Sérgio não hesita, levanta a travessa de barro com o arroz de pato, e ali fica, de mão no ar, a observar a travessa em inox que servia de suporte ao manjar no barro quente tirado directamente do forno. Ali está ela, uma barata de patas finas ao alto, torcidas e completamente queimadas, corpo estaladiço pelo fogo do forno e já esmagado e esmigalhado pelo peso do barro, um ser vivo até há pouco, agora apenas repulsiva decoração.
-Desculpe lá, ‘xôr Jorge, deve-se ter metido debaixo e a gente não deu por ela...
E nisto com a mão sacode o bicho morto do liso inox e volta a pousar o barro quente sobre a superfície agora já limpa. E vai-se embora.
-Sérgio! É pá...
-Diga, ‘xôr Garcia! Que é que foi desta vez?
-Então eu não pedi um Bitoque?
-Tá aí o Bitoque! Que é que queria mais? Camarões?
-Onde é que tá o Bitoque?
-Tá aí!
-Aí aonde, Sérgio? Aqui debaixo do ovo e das batatas não há mais nada!
-Hii... desculpe lá, ‘xôr Garcia!... Devem-se ter esquecido na cozinha... Dê cá isso que eu já lhe trago o bife.
...

Mas a refeição no Vela Azul não se limita ao prato principal. A sobremesa é igualmente caricata, sobretudo com o Sérgio por perto.

Se se pede um pudim, fica-se horas à espera. Se se pede o arroz doce, o Sérgio trata de trazer uma fatia de bolo, e se não se pede nada também é frequente receber-se alguma coisa, da mousse de chocolate à pêra bêbeda, tudo é possível.
-Ó Sérgio, eu não pedi nada disto!
-É pá, agora aproveite e coma que tá bom; não vou levar isso p’ra trás!

E novamente se segue a cuidadosa e atenciosa arte de comer qualquer coisa no Vela Azul, com uma mão sempre a segurar o prato ou pires ou taça e sempre sem largar os talheres.
E daí é o café, e depois adeus aqui está a conta.

Já cá fora, a sós, um sorriso pelo estapafúrdio, se em grupo a gargalhada, por vezes um a jurar para nunca mais nova visita, mas sempre volta, sempre quem comeu no Vela Azul lá volta, porque o Vela Azul está sempre cheio, e se o está, é só por uma coisa: ali pode não se comer nada de jeito, mas o divertimento está assegurado. E tal satisfação, não raras vezes, é bem mais nutritiva, substancial e plena que a de uma bela barriga dilatada.

(escrito em 2002.03.10)