Monday, January 03, 2005

Chamam-lhe o "Vela Azul"

Chamam-lhe assim porque, quando para lá foram os que o compraram (os nomes dos ditos perderam-se no tempo) já assim se chamava.

Montra de vidro com toldo de pano cá fora, azul. Bolos a ver a malta a vê-los sobre guardanapos montados sobre um pano, azul. Sobre as mesas, de madeira escura e risca, azul, as toalhas quadradas de papel, branco. Estampada no vidro da porta entre aberta e fechada, uma dessas toalhas, furtada ao seu destino inicial e violada a marcador, azul, claro, e crucificada com fita-cola, bem virada para fora, o sol empinado a enviar uns quantos descendentes raios para ver o que está escrito cá em baixo.

Mas não é romance algum, apenas a ementa do dia sem grandes histórias nem tempo para romances, e quem quiser que entenda:
-Pratos do Dia: fêveras grelhadas, bacalhau há Braz e frango cosido / Acompanhamentos: batata frita, arroz branco ou arroz de ervilhas, vinho da casa, refrigerantes vários, agua com e sem gaz.

Não há que enganar.

Mesmo assim nem toda a gente lá entra. Ou melhor, entrar entra, mas ficar não fica. A selecção é natural e rápida, sempre baseada na cara de quem lá vai e no subsequente orçamento divulgado ao visitante pela obra que lhe será servida para ser devorada de seguida e sem demora, que ali é local de comida rápida e não de fazer sala.

Cliente habitual, recebe uma lista, com nota em cima a dar conta dos pratos do dia a 5 euros e os restantes com mais 2 em cima. Para o visitante comum é entregue outra lista, bem devidamente camuflada por fora mas recheada no seu organismo interno desfolhado pela mão estranha com notas de prato do dia a 7 euros e com mais 2 para o resto. Ciganos de mau aspecto (que o mesmo é dizer que para o Vela Azul são todos os ciganos), pretos a falar alto ou de modos bruscos ou então pretos que não venham com algo sujo de um qualquer trabalho, bem como velhos caquécticos, incómodos e esquisitos - segue diferente lista, com a nota dos pratos do dia a ascender aos 8 euros com os normais 2 a aumentar sobre os restantes pratos constantes da carta.

E se, por algum acaso, ou por distracção do empregado ou esperteza de quem topou o esquema, duas listas são vistas e a discordância notada, não faz mal, que para além da arte da cozinha no Vela Azul todo o empregado tem bem temperada a língua e sai logo para o balcão:
-Mas que merda é esta, ó Joaquim, misturaste as listas de ontem com as de hoje!? Vê lá onde pões a cabeça!

Mas quem se diverte com isto tudo, no fundo, não são os empregados do Vela Azul, que para eles é tudo rotina e negócio, parte do trabalho, como a seguir vem servir cafés e depois limpar a mesa, para além de chatear a alma a quem por ali passa na sua desgraça.

No meio de tudo isto, o gozo vai para os ‘habituées’ que ali comem todos os dias, que observam de longe as almas penadas pousando em total desconhecimento e nunca mais voltando. Só os desesperados, ou completamente ignorantes, ou os de grande carteira ou mesmo de língua calejada é que vão ficando, até se tornarem gente da casa e perceberem que não vale a pena perder tempo a ler a ementa, porque no Vela Azul é certinho, peixe ou carne, vaca ou galinha, com legumes cozidos ou salada fresca, nada importa, sabe sempre tudo ao mesmo, o óleo é raramente mudado, o arroz com o repetido refogado, a salada com igual tempero, e as reticências para fazer valer isto para tudo o resto...

Perguntem ao Sérgio.

Empregado de longa data, há quem discuta se o grau de disfuncionamento do Sérgio é tão elevado quanto o do estabelecimento, ou se tem um problema de ouvidos e nervosismo crónico (caso este último irónico para um tipo a trabalhar num sítio que serve cafés a toda a hora e de onde tira a cada 10 um para ele de borla). Porque entenda-se, o Sérgio não pára quieto, e mais do que isso, não deixa ninguém comer descansado. O que vale é que é tamanho o descalabro que quem lá vai comer já se diverte com o espectáculo. Pede-se o peixe frito, mas o Sérgio é quase certo que traz ou arroz de pato ou frango assado com batata pala-pala.
-Ó Sérgio, não foi isto que eu pedi...
-Deixa lá, isso também está bom. Come na mesma!


É mesmo assim que responde, logo mirando concentradamente a televisão no canto superior da janela ou voltando costas e não voltando em pessoa inteira senão quando menos se espera e menos é preciso... aí por volta do princípio do fim da refeição. Porque se alguém cai no erro de pousar os talheres, é num gesto rápido, matemático e perfeitamente bem executado que a mão direita de dedos compridos e fortes do Sérgio dança um arco silencioso, afundando nos últimos instantes as pontas por sob a travessa e o prato - qual águia levantando nas garras aquilo que o cliente pode bem ter já acabado como pode nem ter sequer chegado a meio. E de pouco adianta resmungar, que lá adiante já segue o Sérgio. Só resta subir a voz e pedir o que falta e foi raptado em tempo indevido, mas com a certeza de que para trás não virá o mesmo prato; quem sabe, agora sim o peixe frito.

O melhor mesmo é assumir a faca como o sexto dedo de uma mão (ou o garfo, para os mais económicos de ferramenta) e não a pousar senão com a certeza de ter terminado. Depois, sim, nem é preciso chamar pelo Sérgio, que ao mínimo voltar de crânio e atenção visual para outro lado nem se dará pela rapina - na mesa já nada resta da comida servida ainda há pouco.
-Sérgio!... É pá, então mandam-me isto com uma barata esturricada na travessa!?!

O Sérgio não hesita, levanta a travessa de barro com o arroz de pato, e ali fica, de mão no ar, a observar a travessa em inox que servia de suporte ao manjar no barro quente tirado directamente do forno. Ali está ela, uma barata de patas finas ao alto, torcidas e completamente queimadas, corpo estaladiço pelo fogo do forno e já esmagado e esmigalhado pelo peso do barro, um ser vivo até há pouco, agora apenas repulsiva decoração.
-Desculpe lá, ‘xôr Jorge, deve-se ter metido debaixo e a gente não deu por ela...
E nisto com a mão sacode o bicho morto do liso inox e volta a pousar o barro quente sobre a superfície agora já limpa. E vai-se embora.
-Sérgio! É pá...
-Diga, ‘xôr Garcia! Que é que foi desta vez?
-Então eu não pedi um Bitoque?
-Tá aí o Bitoque! Que é que queria mais? Camarões?
-Onde é que tá o Bitoque?
-Tá aí!
-Aí aonde, Sérgio? Aqui debaixo do ovo e das batatas não há mais nada!
-Hii... desculpe lá, ‘xôr Garcia!... Devem-se ter esquecido na cozinha... Dê cá isso que eu já lhe trago o bife.
...

Mas a refeição no Vela Azul não se limita ao prato principal. A sobremesa é igualmente caricata, sobretudo com o Sérgio por perto.

Se se pede um pudim, fica-se horas à espera. Se se pede o arroz doce, o Sérgio trata de trazer uma fatia de bolo, e se não se pede nada também é frequente receber-se alguma coisa, da mousse de chocolate à pêra bêbeda, tudo é possível.
-Ó Sérgio, eu não pedi nada disto!
-É pá, agora aproveite e coma que tá bom; não vou levar isso p’ra trás!

E novamente se segue a cuidadosa e atenciosa arte de comer qualquer coisa no Vela Azul, com uma mão sempre a segurar o prato ou pires ou taça e sempre sem largar os talheres.
E daí é o café, e depois adeus aqui está a conta.

Já cá fora, a sós, um sorriso pelo estapafúrdio, se em grupo a gargalhada, por vezes um a jurar para nunca mais nova visita, mas sempre volta, sempre quem comeu no Vela Azul lá volta, porque o Vela Azul está sempre cheio, e se o está, é só por uma coisa: ali pode não se comer nada de jeito, mas o divertimento está assegurado. E tal satisfação, não raras vezes, é bem mais nutritiva, substancial e plena que a de uma bela barriga dilatada.

(escrito em 2002.03.10)

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