Thursday, January 06, 2005

Chamam-lhes "meninas"

Mulher. Mulher? Mulher. Menina. Todas meninas de rua. Putas. Magras algumas. Gordas. Coxas grossas nuas. Calções brancos de bainha para fora. Gangas. Um casaco de pele falsa. Nas ruas. Ao frio. Encostadas a um poste. Sob o telhado de vidro de uma paragem de autocarro. Amparadas umas às outras. Em fogueira. Em conversa. A sós numa esquina. Juntas à espera entre ‘chiclets’ e cigarros e experiências trocadas. Botas altas. Sandálias de tiras. Tops de alças. Camisolas encolhidas na máquina. Soutien de renda e mais nada. Boca vermelha. Boca rosa. Boca brilhante como os pneus de um carro novo no stand; não como os carros que param. Cabelos compridos à solta. Cabelos lisos curtos. Loiras. Morenas. Sotaque daqui e dali. Portuguesas. Estrangeiras.

Mulheres, meninas e putas com gordura para todos os gostos e dietas, vestidas cada uma com sua própria e única fantasia diária de pé pelas ruas, em conversa ampla ou em surdina, sempre à espera, cabelos ajeitados com dois dedos para o lado, olhos desviados por mais de dois segundos de contacto, silêncio.

Há conversa? Quanto levas? Que é que fazes?...
Nem uma palavra do batom carregado de vermelho.
Julgas que és mais que as outras!? Puta convencida! Levas onde levam todas!
Mais uma hora que passa. Às vezes aviam-se dois de uma assentada em 15 minutos. O dobro para sua despesa. Depende da hora, da época, da zona...
Os semáforos carregam-se de vermelho. Alongam-se. Os olhos.
Fábricas de sonhos.
Produção industrial.
Foi-se o luxo da imaginação.
Carne por carne.
A solidão o mal do sec. XXI.
...

E tu?
Ela volta-se. Olha.
Quanto é? Quanto levas? O que fazes? Onde? Depende. 5. 50. 35. Ou mais? Tudo? Quente. Tua. Onde quiseres. Não quero. Não queres. Vai-te embora. Esquisita. Esquisito. Decepção. De longe parecia. Nem aqui.

Até as putas já se dão ao luxo de escolher trabalho. Pagam-lhes demais. Têm o nome. Audácia. Experiência. A mais velha do mundo. Onde têm a carta de referências? Não há escolas? Nos bordéis pagam para lhes ensinar as várias maneiras? Precisam de cobaias para praticar?
Há mais por aí.

Metes-me medo...
E contudo é Inverno.

Uma brisa varre rente ao chão. Cimento gasto e gretado. Corta as pernas até à micro-saia. Rasga os lábios encapados de batom. Enruga a pele coberta de base. Chora os olhos. Choram os olhos. Um poste de luz é um abrigo.
Linda menina!
Ela desvia.
Ele passa e desaparece com a luz verde.
Mais à frente
-que fazem aqui a esta hora?
-esperamos o autocarro, sr. agente!
Riem-se todas. Sempre o mesmo. Logo ele passa. Já conhece a história. Dizem que faz parte dela.
Risinhos. Escárnio. Cuspo. Garrafas atiradas de passagem rápida e vidros baixados. Gritos. Urros. Bebedeiras. Ares de fastio. Ares de inveja. Ares cúmplices. Fantasias. Tudo depende da hora; há fases. A época também. Mas é mais o dia. E a zona. A acabar distribuem-se sempre pastilhas a dobrar. Morango preferidas. Mentol também.
Música nas alturas e alguém a lembrar “La Puta Cabra! La Puta Cabra!”
Elas percebem. São putas. Não são burras.
-Cabrões filhos-da-puta!
-A minha mãe não te conhecia!
-Mete-lho acima para ver se ela se lembra, cabrão de merda!!
-Suas puutas!!
Cada um faz pela vida.
Cada um faz a sua vida.
Cada um se faz à vida.
Cada uma faz a vida.
Faz-me agora.
É uma de 100.
Está bem! Despacha-te, minha puta! Isso! Assim... Assim... Põe-te agora em cima! Toma mais 50! Vá, anda, despacha-te lindinha!
Por trás, jóia! Duas de 20. Não dá, amor? São das antigas, querida! Ah, agora já cantas! E também falas ao microfone? Isto serve-te, não serve? Já sei que não podes falar...
...

Nem todo o que chega sai com companhia.
-Rai’s te fodam, grande puta!
-Vai meter pilhas dentro, filhinho!
-Ainda hás-de vir chuchá-la de graça!
-Põe-t’andar, cabrão! Vai meter o caralho na cona da tua mãe!
-Vim agora da tua! Ela é que te recomendou!
-Circula, cabrão! Vai bater uma!
-Vai tu circular essa cona p’rá piça do teu pai, grande vaca!
Arranca.
Acaba.
Recomeça.
Risada.
Rotina.
Noite e dia.
O silêncio mama da noite. Prédios de olhos fechados. A lua muda. Uma ou outra sirene relampeja mas nem discute porque nem pára. Até à noite o tempo escasseia. Até à noite que vem. Até de dia. Até amanhã.

Mas agora ainda dura. Pela mata ou pela rua. Esquisita? Desesperada? Ainda nula? Dependência? Ninfomaníaca?

Dá-me uma enquanto metes uma dose comigo. Pagas? Está incluído? E se houver outras? E se houver outros?... Por cima. De lado. Em pé. Deitada. A cavalo. Engoles? Ver-te com outra. Vais com dois? Metes duas na mesma? Mete-a toda na boca? Chupa. Lambe-a toda. Aqui no carro. Em minha casa ou na tua. Em frente a um espelho. Despe-te. Bate-me uma. Veste isto. Salta! Levas estaladas? Bate-me com força. Meia-hora. Chibatadas? Dás ou levas? Fode-me até ficares toda fodida! Pedrada! Dormes lá? Para um filme. Deixas-te ser gravada? Fotografada? Lambida? Mijada? Faz um strip. Mais 3 notas. No cu? Sem preservativo. Sem preservativo? Com preservativo. Aguentas mais no pito? Ao mesmo tempo no cu e na rata! Vem-te! Vem-te agora! Geme. Grita. Quem manda? Diz quem manda! Puta! Agora em cima da mesa. Agora em cima da banca. Um 69! Deita-te na cama! Estica-te no carro. Mete as mudanças dentro do pito! Uma rapidinha aqui na mata. Põe-te lá fora!
Morta.

Encontrada morta, ontem, “menina da rua”, vista pela última vez na zona da praia da desgraça, junto ao bairro fácil e perigoso, pelas 2 da madrugada.
Chama-lhes meninas... Sabem mais que a avó da humanidade inteira!
Putas!
Coitada...
Drogada.
Esporrada toda ela.
Porrada nela enquanto levou nela. Durou quase duas horas.
Autópsia: violada, espancada, morta, basta.

Mas a rotina retoma.
Chega a noite, abre a loja, e outras coisas.
Quase todas iguais. Umas mais fufas que outras. Umas mais esquisitas que outras. Em saldos umas. De luxo outras. As razões confusas. Um carro das notícias à espreita para fazer uma reportagem. Elas vêem-no. Fazem que não vêem. Entram no primeiro carro e dali a minutos vêem-no. Regressam ao mesmo sítio. Dinheiro escondido. Um susto ou nada demais. Gozo. Piadas e coscuvilhices desta e daquela. Um trabalho como os outros. Quem tem sorte são aquelas putas estrangeiras! Passam o dia a dançar e a bater punhetas. Moedas a cair para deslizar as janelas. Lenços de papel nos baldes ao canto. Música ‘techno’ aos pulos abafada. A voz a anunciar a número 4 Andrea para fazer companhia à 2 Laura. Cabines repletas. Alguém tem de se contentar com as cassetes de vídeo. A estas chamam-lhes as putas do peep-show. Algumas transsexuais? Algumas elas que foram eles? Feias ou bonitas, todas tiram a roupa mínima. Como se fosse coisa do outro mundo. Os espelhos facilitam e prolongam a vista. Privacidade nenhuma. Olhos nos olhos. O tecto a rodopiar a távola vermelha. Se duas, quase pára. Um sorriso repetido sempre da mesma forma. Os mesmos gestos copiados. Lá chega uma nova. Genica. Que língua fala? Desaparece por trás da cortina. Novo lenço na távola, nova cara, nova coxa, nova rata, carteira vazia. Rua fora.

Quiosques repletos de capas. Playboy. Penthouse. Clímax. Peles lisas. Bocas bem desenhadas. Seios firmes. Esculturas rapadas. Desenhos artísticos. Há pouco duas tinham celulite, quando mais se mexiam. Uma estava com pele de galinha. Outra tinha um penso rápido numa mama. Acabada de passar a lâmina há minutos noutra; pele sensível. Duas grandes borbulhas vermelhas, uma em cada nádega. Do sensual ao serenamente cómico.

Mas se a noite se prolonga, só a mentira fica pronta, e de gala, junto à fantasia.
Imagens pixelizadas de bocas pulposas com as línguas de fora ainda a pingarem leite. Fontes de mamas espalhadas pela cidade escura e obscura. Cada carro uma boleia para as estrelas. Abertas as braguilhas da sociedade, baixadas as calças, levantadas as saias, abertas as pernas... somos todos a mesma criatura?

O romance ficou à porta.
Quem escrevia cartas às meninas? Quem visitava os bordéis às sextas-feiras e aos sábados? Quem tinha uma fixa? Quem pagava mensalidade? Quem sabia a história de todas?
Como te chamas hoje?
Que te interessa? Sónia.
E tu?
Não é da tua conta. Paula.
Queres chamar a tua amiga?
Quem, a Sandra?
...

Todas sónias. E sandras, e martas, e paulas, e anas, e algumas com nomes estranhos de letras em ordem confusa, e sempre de muito poucas palavras. Depois refinam-se. São susy. São dany. São eleide. São mary. São caty...
Mas para quê, se vais ter a boca cheia!? Entra. Toma, guarda já. Tens meia hora. Chega. Vai-o chupando enquanto bates uma. Isso. Isso! Espera. Ah, é tão bom! Tu és tão bom, querido! Excitas-me toda! Ah, puta, isso... chupa-o todo... Tão boa... Fode-me, querido, fode-me toda. Queres, não queres? Já levaste com ele na cara agora queres levá-lo na cona! Abre-te toda, minha puta! Isso, isso... Ah, isso, mete-o todo, querido! Enterra-mo na cona! Põe-te de lado, para te ir por trás, minha puta! Ah, tão boa... ah, tão boa... Toma, é isto que queres? É, não é!? Sim... sim... Diz mais alto! Sim! Já estás a gemer? Ah, sim, sim! Ah, fode-me toda! Isso, fode-me toda! Puta! Ai, meu Deus! Ah, sim, sim, sim! Entra-me! Enterra-mo! Fode-me! Anda! Fode-me a cona toda! Fode-me toda! Anda, garanhão! Anda, querido! Vem-te na minha rata! Deita cá para fora essa esporra toda! Ah, puta de merda! Boa!... Anda... Toma... queres levar nela... Sim, mais! Mais! Enfia-o todo! Enfia esse mangalho todo e esporra-me a cona toda! Não, quero-me vir na tua cara! Estás-te a vir!? Quase... Estou quase... ah, minha puta, toma, chupa-o e engole a esporra toda! Encharca as mamas! Espalha-o todo! Isso! Isso! Ah!... Mmm! Isso, isso querido! És tão forte! Isso, querido... Mmm...

De volta tudo ao sítio.
Ao bocal de partida.
Ao local de chegada e ida.
À Sida?
Paciência...
No fim é tudo sobre quem quer e quem paga.
Só.
Farsa palhaçada?
Quem sabe de que se fala?
Só se conhece quem actua - loira, morena, mulata, asiática, brasileira, eslava, baixa, alta, magra, esguia, gorda, mamalhuda, escanzelada, doente, bonita, horrorosa, pintada, porca, de cá, de fora, desta zona, do chulo x, por conta própria, só para pagar a escola, esta é de graça, para a droga, para a roupa, como uma esponja, só quando precisa...

Alguém encontra de manhã uma prova?
Impecável limpeza.
A polícia.
Como a outra, na praia...
Boleia para a aventura. Mais uma nota, mais uma viagem. Mais uma dose.
Droga de vida, a vida para a droga. Comida e roupa lavada ou renda.
Chamam-lhes meninas, mas já são crescidas.
-Antes isto que lavar escadas.
-E quem me paga a casa?
-Quem me dá a sopa?
A mais velha companheira da rua.

Conhecem-se quase todas. Batem as zonas. Ficam-se por uma. Respeitam-se e odeiam-se. Comadres e concorrentes. De luxo barato a baratas. As grandes companhias valem hotéis pagos à diária. Algumas são estrelas. Algumas casam mesmo com eles. A maioria é como em tudo o resto o que é a maioria, fica-se pela maioria e fica-se pela média.

Quem as vê na rua, se é homem, levanta a cabeça e sonha, depois deseja, depois pensa e continua, com a cabeça baixa; se é mulher levanta a sobrancelha e desafia, dando o braço a quem tem ao lado, e nem desconfia...

Algumas nem se reconhecem quando nos vendem o que vendem na loja de dia, enquanto dobram a roupa, enquanto embalam ou enquanto fazem o que fazem, das compras na mercearia à discoteca.

Pelo meio, no fundo ninguém se conhece mesmo, mas vale sempre mais a pena compor a personagem, trocar a calça pela saia e a discrição pela cor garrida.

Eles, alguns, têm de passar na lavandaria longínqua para tirar uma marca rosa da gola da camisa. Mas se a coisa escapa na miopia da chegada, e se é vista pela que vive a vida (não a da rua), também não há problema:
-Ora essa, amor, foi só uma menina.

(escrito em 2002.02.17)

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